quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Baal-Habab




Algumas representações de Baal-Habab

Vamos conhecer agora a história de "Baal", o deus cananeu tantas vezes citado no Antigo Testamento da Bíblia; um mito importantíssimo por muito tempo na terra de Canaã e em regiões vizinhas.

Desde a década de quarenta, a arqueologia tem possibilitado conhecer cada vez mais sobre os povos antigos do oriente, principalmente o povo cananeu e sua religião. Descobertas arqueológicas no local da antiga cidade de "Ugarit" mostraram centenas de placas de barro pertencentes à biblioteca do templo de "Ras Sharma". Esses textos religiosos provam que a oposição contra a qual a tradição de Moisés teve que lutar não era uma simples aglomeração de pequenos cultos de fertilidade presididos por insignificantes deuses e deusas, mas, pelo contrário, um dos mais elaborados sistemas religiosos do mundo antigo. A religião dos cananeus já era bem difundida e já estava estabelecida na Palestina antes da conquista israelita. Era uma religião com ritos bem elaborados e se identificava com os interesses de uma população agrícola. A religião dos cananeus era identificada com a natureza e tinha por objetivo ensinar os homens a cooperarem e a controlarem o ciclo das estações.

A história de Baal começa com a batalha entre Baal e “Yam-Nahar”, o deus dos mares e rios. Ela está contada em pequenas tábuas que datam do século XIV aC. Baal e Yam viviam ambos com “El”, o Sumo Deus cananeu. No conselho de El, Yam exige que Baal lhe seja entregue. Mas, durante a batalha, usando duas armas mágicas, Baal derrota Yam e está para matá-lo quando “Asherah” (esposa de El e mãe dos deuses) diz que é desonroso matar um prisioneiro. Baal envergonha-se e poupa Yam. Nesta batalha, Yam-Nahar representa o aspecto hostil dos mares e rios que ameaçam constantemente inundar a terra, enquanto Baal, o deus da tempestade, torna a terra fértil.

Em outra versão, Baal mata o dragão de sete cabeças “Lotan”, chamado em hebraico de “Leviatã”. Em quase todas as culturas, o dragão simboliza o latente, o oculto e o informe diferenciado; portanto, com um ato verdadeiramente primitivo, Baal interrompeu o retorno à informidade primal. Por essa razão, é recompensado com um belo palácio, construído pelos deuses em sua honra. No início da própria história da religião, portanto, a criatividade é vista como divina. E na verdade nós ainda usamos essa linguagem religiosa para falar da “inspiração criadora", que refaz a realidade e traz novo sentido ao mundo. Assim acontece nas artes plásticas, na música, na literatura, no trabalho, nas relações humanas...

Mas Baal sofre uma inversão: morre e tem que descer ao mundo de “Mot”, o deus da morte e da esterilidade. Quando sabe do destino de seu filho, o Sumo Deus El desce de seu trono, veste uma tanga e retalha as faces, mas não pode redimir o filho. É “Anat”, irmã e amante de Baal, que deixa o reino divino e vai em busca dele, na verdade sua alma gêmea, desejando-o, segundo o texto das tábuas, “como uma vaca deseja o seu bezerro e uma ovelha o seu cordeiro”. Encontra o seu corpo, e então prepara e oferece aos deuses e homens um banquete fúnebre em sua honra: pega Mot, abre-o com sua espada, divide-o, queima-o e tritura-lhe “como milho”, antes de semeá-lo ao chão. É assim que Baal se torna o deus do vento e do clima. De acordo com o baalismo, era ele quem enviava orvalho, chuva e neve e, conseqüentemente, quem dava fertilidade para a terra. Os cananeus acreditavam que era por causa de Baal que, ano após ano, a vegetação retornava após a estiagem, as fêmeas dos animais tinham inúmeras crias e as mulheres davam filhos e filhas para seus maridos.

Histórias semelhantes são contadas sobre as outras grandes deusas – Inana, Ishtar e Ísis – que buscam um deus morto e dão vida nova ao solo. Os cananeus estabelecem, entretanto, que a vitória de Anat deve ser perpetuada, ano após ano, em comemoração ritual. Mais tarde – não podemos saber ao certo como, pois as fontes são incompletas – Baal é trazido de volta à vida e devolvido a Anat. É uma apoteose de realização, inteireza e harmonia, simbolizada pela união dos sexos. E era celebrada numa grande festa, na antiga Canaã, com rituais bacanálicos, envolvendo sexo ritual, incesto e serpentes... não admira que, no texto bíblico do Antigo Testamento, o povo de Israel seja admoestado a manter distância das práticas do povo de Canaã...

Assim, ao imitarem os seus deuses, aqueles homens e mulheres acreditavam partilhar a luta deles contra a esterilidade e asseguravam a criatividade e a fertilidade do mundo. Mas a morte de um deus, a sua busca pela deusa e o posterior retorno triunfante à esfera divina eram temas religiosos presentes em muitas culturas antigas. Daí a completa originalidade da muito diferente religião do Deus Único adorado pelos hebreus. Uma novidade radical e inteiramente estranha, que exigia ascetismo, trazia regras de conduta moral e, mais do que isso, solicitava uma entrega amorosa. Uma proposta para um novo modo de vida, enfim; surgida num ambiente completamente hostil e que não conseguia compreendê-la. E que mesmo contra o tempo e todas as probabilidades naturais, superou tudo e todos e subsiste até os nossos dias.


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terça-feira, 30 de outubro de 2007

Enuma Elish


O “Enuma Elish” é o poema épico babilônico. Escrito em sete tábuas de argila, data do século XII aC, no mínimo, e foi encontrado no século XIX nas ruínas da biblioteca de Assurbanípal, em Nínive, próximo da atual cidade de Mossul, no Iraque. Nele é contada a história da origem dos deuses, dos homens e do universo.

Segundo o Enuma Elish, os deuses surgiram aos pares, de uma Massa informe, aguada – uma substância que pertencia, ela própria, ao mundo divino. No mito babilônico – como depois na própria Bíblia – não houve criação a partir do nada, uma idéia inexistente no mundo antigo. Antes que existissem os deuses ou os seres humanos, havia essa Matéria Prima Sagrada, desde toda a eternidade. Ao tentar imaginar esse material espiritual divino, os babilônios pensaram que deveria ser semelhante às terras pantanosas da Mesopotâmia, onde as inundações ameaçavam constantemente destruir as frágeis obras dos homens. No Enuma Elish, o caos não é, portanto, uma massa ígnea fervilhante, mas um bolo mole no qual não existem limites, definição ou identidade.

“Quando o doce e o amargo se misturaram, nenhum junco foi trançado, nenhuma palha sujou a água, os deuses não tinham nome, natureza ou futuro.” - Enuma Elish

Então surgiram três deuses do pântano primal: “Apsu”, o deus das águas dos rios, sua esposa “Tiamat”, deusa do mar salgado e “Mummu”, o “Ventre do Caos”. Mas esses deuses eram, por assim dizer, um modelo primitivo inferior, que precisava de aperfeiçoamentos. Os nomes “Apsu” e “Tiamat” podem ser traduzidos como “abismo”, “vazio” ou “fosso sem fundo”. Eles partilhavam a Informe Inércia original, e ainda não haviam atingido uma identidade nítida. Em conseqüência, emanou deles uma sucessão de outros deuses, num processo conhecido como “Emanação”, que iria se tornar muito importante na história da idéia de Deus. Os novos deuses surgiram, um do outro, aos pares, cada um dos quais adquirindo uma maior definição que o anterior, à medida em que avançava essa evolução divina. Primeiro vieram “Lahmu” e “Lahamn” (os nomes significam ‘aluvião’: água e terra continuam misturados). Em seguida “Ansher” e “Kishar”, identificados respectivamente com os horizontes do céu e do mar. Depois vieram “Anu” (o céu) e “Ea” (a terra), e pareceram completar o processo. O mundo divino tinha céu, rios e terra, distintos e separados uns dos outros. Mas a criação apenas começara: as forças do caos e desintegração só podiam ser mantidas à distância graças a uma luta penosa e incessante. Os deuses novos, dinâmicos, rebelaram-se contra seus pais, mas embora Ea conseguisse dominar Apsu e Mummu, não pôde submeter Tiamat, que produziu toda uma raça de monstros deformados para lutar por ela. Felizmente, Ea tinha um filho maravilhoso: “Marduk”, o deus sol, o mais perfeito de toda a linhagem divina. Numa reunião da Grande Assembléia dos deuses, Marduk prometeu combater Tiamat, com a condição de tornar-se governante deles. Contudo, só com grande dificuldade conseguiu matar Tiamat, após uma longa e perigosa batalha. Nesse mito, a Criação é uma luta, travada laboriosamente contra dificuldades arrasadoras.

Mas Marduk acaba de pé sobre o vasto cadáver de Tiamat, e decidiu criar um novo mundo: dividiu o corpo de Tiamat (o mar) em dois, para formar o arco do céu e dos homens; depois, criou as leis que iriam manter tudo em seu devido lugar. Devia-se alcançar a ordem. Mas a vitória não era completa. Tinha de ser restabelecida, por meio de uma cerimônia especial, ano após ano. Em conseqüência, os deuses se reuniram na Babilônia, centro da nova Terra, e construíram um templo onde se podiam realizar os ritos celestes. O resultado foi o grande Zigurate (torre-templo) em homenagem a Marduk, “o templo terreno, símbolo do Céu infinito”. Quando ficou concluído, Marduk tomou seu lugar na reunião e os deuses gritaram: “Esta é Babilônia, cidade querida do deus (Marduk), seu amado lar!”. Depois realizaram a Leitura Sagrada “da qual o universo recebe a sua estrutura, o mundo oculto se faz claro e os deuses têm seus lugares atribuídos no universo”. Essas leis e rituais são obrigatórios para todos; até os deuses têm de observa-los para garantir a sobrevivência da criação.

O mito expressa o sentido interior da civilização, na visão dos babilônios. Eles sabiam muito bem que haviam sido seus próprios ancestrais que tinham construído o Zigurate, mas a história do Enuma Elish articulava a crença em que sua empresa criativa só podia durar se partilhasse do poder do divino. O ritual da Leitura Sagrada que celebravam no Ano Novo fora criado antes que os seres humanos passassem a existir: estava escrita na própria natureza das coisas, à qual até os deuses tinham de se submeter. O mito também expressava a convicção de que a Babilônia era um lugar sagrado, centro do mundo e lar dos deuses - uma idéia crucial em quase todos os sistemas religiosos da Antiguidade. A idéia de uma cidade santa, onde homens e mulheres se sentiam em íntimo contato com o poder sagrado, fonte de toda existência e eficiência, seria importante em todas as três religiões monoteístas.

Por fim, quase como uma reconsideração, Marduk criou a humanidade. Pegou “Kingu” (o aparvalhado consorte de Tiamat), matou-o e modelou o primeiro homem misturando o sangue divino com o pó. Os deuses observaram, pasmos admirados. Há, porém, certo humor nessa visão mítica da origem da humanidade, que não é de modo algum o auge da criação, mas deriva de um dos deuses mais estúpidos e ineficazes. Mas a história estabelecia outro ponto importante: o primeiro homem fora criado da substância de um deus. Portanto, partilhava da natureza divina, por mais limitada que fosse a forma. Não havia fosso entre os seres humanos e os deuses. O mundo natural, homens, mulheres e os próprios deuses, todos partilhavam da mesma natureza e derivavam da mesma substância divina. A visão pagã era holística, isto é, deuses não eram separados de homens, numa esfera ontológica separada. A divindade não era necessariamente diferente da humanidade. Portanto, não havia necessidade de uma revelação especial dos deuses, que baixasse orientações divinas do alto à Terra. Os deuses e seres humanos partilhavam da mesma situação, sendo a única diferença que os deuses eram maiores, mais poderosos e imortais.

Essa visão holística não se limitou ao oriente médio, era comum no mundo antigo. No século VI aC, Píndaro expressou a versão grega dessa crença em sua ode sobre os jogos olímpicos:

Única é a raça, única,
de homens e deuses;
de uma única mãe uns e outros tiramos alento.
Mas uma diferença de poder
Em tudo nos mantém separados;
Pois um é o mesmo que nada,
mas o brônzeo céu continua
Um hábito fixo para sempre.
Contudo podemos, em grandeza da mente
Ou do corpo, ser como os Imortais.


Píndaro não vê os atletas como seres isolados, cada um lutando por si, mas os compara aos deuses, o padrão para toda realização humana. Os homens não imitavam os deuses como seres distantes, mas os entendiam como correspondentes ao potencial da sua própria natureza essencialmente divina.

O mito de Marduk e Tiamat parece ter influenciado o povo de Canaã, que contava uma história semelhante sobre "Baal-Habab", o deus da tempestade e da fertilidade, muitas vezes citado na Bíblia.

Continua...


Fontes e bibliografia:
ARMSTRONG, Karen. "A History of God", 1993, The 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam" - "Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo", São Paulo: Companhia das Letras, 1992.



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sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Mitos primordiais: Criação e Origens

Réplica do templo da antiga deusa Ishtar

De fato, tudo leva a crer que no mundo antigo as pessoas acreditavam que só participando da vida “mágica” é que se tornariam de fato humanas. A vida terrestre era obviamente frágil, convivia-se rotineiramente, e intimamente, com a mortalidade. Imagina-se que as expectativas do tempo de vida eram muitíssimo mais baixas do que as atuais. Mas, se imitassem as ações dos deuses, os humanos partilhariam, em certa medida, dos poderes e da eficiência superiores deles. Assim, ensinava-se que os deuses haviam mostrado aos homens como construir suas cidades e templos, cópias menores dos lares deles no reino divino. O mundo sagrado dos deuses, como contavam os mitos – era não apenas um ideal ao qual almejavam homens e mulheres, mas o protótipo da existência humana; era o modelo ou arquétipo original no qual se baseara a vida aqui embaixo. Acreditava-se que tudo na terra era uma réplica de alguma coisa do mundo divino, percepção essa que deu forma à mitologia, aos rituais e à organização social da maioria das culturas da Antiguidade, e continua a influenciar as sociedades mais tradicionais até os nossos dias!

No Irã antigo, por exemplo, acreditava-se que cada pessoa ou objeto no mundo material (‘getik’) tinha sua contraparte no mundo da realidade sagrada (‘menok’). É uma perspectiva difícil de ser entendida por nós, no mundo moderno, pois vemos a autonomia e a nossa independência como valores supremos. Mas o famoso provérbio “post coitum omne animal tristis est” (‘após o sexo, todos os animais ficam tristes’), ainda expressa uma experiência muito comum - essa expressão alude ao fato de que, após um momento intenso e avidamente esperado, muitas vezes sentimos que perdemos alguma coisa maior, que a felicidade real e perene, pela qual tanto ansiávamos, continua além do nosso alcance. Como alcançar aquele estado de perfeita e constante felicidade que tanto queremos? Nossos ancestrais tentaram fazê-lo buscando a perfeição que não se encontra nesta Terra ou nesta vida. Para tanto, imitar os deuses parecia ser a única maneira.

A imitação de Deus ainda é uma importante idéia religiosa: descansar no Shabat, lavar os pés de alguém na Quinta-feira Santa – atos em si desprovidos de sentido – são hoje significativos e sagrados porque as pessoas acreditam que foram praticados antes por Deus ou por uma manifestação Sua. Uma espiritualidade semelhante caracterizou o mundo antigo da Mesopotâmia. O vale do Tigre-Eufrates, onde hoje é o Iraque, foi habitado já em 4000 aC pelo povo conhecido como sumério, que estabeleceu uma das primeiras grandes culturas do Oikumene (mundo civilizado). Nas cidades de Ur, Erech e Kish, os sumérios criaram a escrita cuneiforme, construíram as extraordinárias torres-templos chamadas "zigurates" e desenvolveram uma legislação, literatura e mitologia impressionantes. Não muito depois, a região foi invadida pelos arcádios semitas, que adotaram a língua e cultura da Suméria. Ainda mais tarde, por volta de 2000 aC, os amoritas conquistaram a civilização arcádio-suméria e fizeram da Babilônia sua capital. Por fim, cerca de quinhentos anos depois, os assírios se estabeleceram na vizinha Ashbur e acabaram por conquistar a própria Babilônia no século VIII aC. Essa tradição babilônica também acabou por afetar a mitologia e a religião de Canaã, que viria a se tornar a Terra Prometida dos antigos israelitas. Como outros povos do mundo antigo, os babilônios atribuíam suas conquistas culturais aos deuses que haviam revelado seu estilo de vida aos místicos ancestrais deles. Assim, supunha-se que a própria Babilônia era uma imagem do Céu, sendo cada um dos seus templos uma réplica de um palácio celeste.

A "ligação com o mundo divino" era festejada e perpetuada todos os anos na “Grande Festa de Ano Novo”, que já se havia estabelecido firmemente no século VII aC. Comemorada na cidade sagrada da Babilônia no mês de nisan – nosso abril – a festa entronizava solenemente o rei e estabelecia seu reinado por mais um ano. Contudo, essa estabilidade política só podia durar na medida em que participasse do governo mais duradouro e eficiente dos deuses, que haviam trazido ordem ao caos primordial quando criaram o mundo. Os onze dias sagrados da Festa pretendiam extrair, assim, os seus participantes do mundo profano e lançá-los dentro do mundo eterno dos deuses, por meio de gestos rituais. Matava-se um bode expiatório para anular tudo que era velho e agonizante. A humilhação pública do rei e a entronização de um rei carnavalesco em seu lugar representavam o caos original. Por fim, uma falsa batalha reproduzia a luta dos deuses contra as forças da destruição.

A esses atos simbólicos eram atribuídos, portanto, valor sacramental: possibilitavam ao povo mergulhar no poder sagrado, ou “mana”, do qual dependia sua grande civilização. Sentia-se que a cultura era uma frágil conquista, que sempre poderia cair presa das forças da desordem e da desintegração (o fato de essa sensação permanecer fortemente sentida nos dias atuais seria mera coincidência?). Na tarde do quarto dia da festa, sacerdotes e atendentes entravam no aposento mais sagrado do templo para recitar o “Enuma Elish”, poema épico sobre o mito da criação, escrito em sete tábuas de argila, que comemorava a vitória dos deuses sobre o caos.

A história não era uma narrativa factual das origens físicas da vida na Terra, mas uma alternativa deliberadamente simbólica de sugerir um grande mistério e liberar seu poder sagrado. Uma versão literal da criação seria impossível; o mito e o símbolo eram, pois, a única maneira adequada de descrevê-los. Um breve exame do Enuma Elish nos oferece uma bela visão da espiritualidade que deu origem a diversas das idéias de Deus posteriores.

Tábuas do "Enuma Elish"

Embora a versão bíblica e também a versão corânica da criação tomassem, em última análise, uma forma muito diferente, esses estranhos mitos parecem não ter desaparecido por completo, pois há indícios de que acabaram por reentrar na história da idéia de Deus num período bastante posterior, revestidos de um idioma monoteísta.

A história do Enuma Elish começa com a criação dos próprios deuses – um tema que, como veremos, seria muito importante no misticismo judeu e muçulmano.

Continua...

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Começando do começo: O Sumo Deus

"Stonehenge" - monumento pré-histórico estruturalmente conservado até nossos dias

No começo, os seres humanos acreditavam num Deus que era a Causa primeira de todas as coisas e o Senhor do Céu e da Terra. Ele não era representado por imagens e não tinha templos nem sacerdotes a seu serviço. Era excelso demais para ser cultuado por humanos, inadequadamente. Aos poucos, foi se esmaecendo na consciência do seu povo. Por fim, tornou-se tão remoto que eles decidiram que não mais o queriam. Acabaram por dizer que ele desaparecera.

Esta é a teoria popularizada por Wilhelm Schmidt no livro "A Origem da Idéia de Deus", publicado pela primeira vez em 1912. Schmidt sugere que houve um monoteísmo primitivo antes de os homens começarem a adorar vários deuses. Originalmente, reconheciam apenas uma expressão da Divindade, Suprema, que criara o mundo e governava de longe os assuntos humanos. O fato é que a crença nesse sumo Deus (às vezes chamado de Deus do Céu, já que está relacionado ao céu), ainda é uma característica da vida religiosa de diversas tribos africanas. Eles anseiam por Deus nas preces. Acreditam que ele os observa e punirá as más ações. Contudo, estranhamente, está ausente de suas vidas diárias: não tem culto especial e jamais é representado em alguma efígie. Os membros das tribos dizem que ele não pode ser expresso e não pode ser contaminado pelo mundo dos homens. Alguns dizem que ele “foi embora”. os antropólogos sugerem que esse Deus tornou-se tão distante e excelso que na verdade foi substituído pelos espíritos menores e deuses mais acessíveis. Também assim, diz a teoria de Schmidt, nos tempos antigos, o Sumo Deus foi substituído pelos deuses mais atraentes dos panteões pagãos. No começo, portanto, havia um Deus. Se assim é, então o monoteísmo foi uma das primeiras idéias desenvolvidas pelos seres humanos para explicar o mistério e a tragédia da vida. Também indica que algumas características necessariamente precisariam ser atribuídas a essa Divindade Absoluta:

# É “Santo” – isto é, totalmente excelso, não pode ser contaminado pelo mundo dos homens (“santidade” significa ‘separado’, ‘outra realidade’, estar além do mundo físico).

# É Inacessível, Inexprimível e Inexplicável.

# É o Criador do Céu e da Terra.

# Governa a criação e os destinos humanos.

De qualquer modo, é impossível provar isso num ou noutro sentido. Tem havido muitas teorias sobre a origem da religião. Entretanto, tudo indica que crer em Deus é uma coisa que os seres humanos sempre fizeram. O que muda são as idéias religiosas. E quando uma idéia deixa de funcionar, os seres humanos a substituem. E as idéias esquecidas desaparecem discretamente, até sumir por completo do inconsciente coletivo. Em nossa própria época, muitas pessoas diriam que o Deus adorado durante milênios por judeus, cristãos e muçulmanos tornou-se tão remoto quanto o Sumo Deus da antiguidade. O ateísmo vem crescendo ao redor do mundo, e sem dúvida o sentimento religioso parece estar desaparecendo nas mentes de um número crescente de pessoas, sobretudo na Europa Ocidental. Muita gente relata um vazio deixado pela idéia de Deus em suas consciências, onde antes ela estava, porque, por mais irrelevante que possa parecer em certas áreas, esta idéia desempenhou papel crucial em nossa história, sempre foi um dos maiores conceitos humanos de todos os tempos. Para entender o que estamos perdendo – se é que estamos perdendo – precisamos ver o que as pessoas faziam antes de adorar esse Deus, o que ele significava e como foi concebido. Para fazer isso, precisamos remontar ao mundo antigo do Oriente Médio, onde a noção que temos de Deus hoje foi surgindo aos poucos, por volta de 14 mil anos atrás.

Pintura rupestre pré-histórica provavelmente representando "poderes mágicos"

Um dos motivos pelos quais a religião hoje parece irrelevante para tanta gente é que muitos de nós não têm mais o senso de que estão cercados pelo invisível. Nossa cultura científica nos educa para concentrar a nossa atenção no mundo material à nossa frente. E essa maneira de olhar o mundo alcançou grandes resultados. Uma de suas conseqüências, porém, foi que nós estamos perdendo o sendo do “espiritual” e do “santo”, que impregna, em todos os níveis, as vidas das pessoas das sociedades mais tradicionais, e que foi outrora um componente essencial de nossa experiência do mundo e da vida. Nas ilhas dos Mares do Sul, chama-se essa Força misteriosa de “Mana”. outros a percebem como uma Presença ou Espírito. Às vezes foi sentida como uma forma de radioatividade ou eletricidade. Já se acreditou que vivia no chefe espiritual, no reino vegetal, em rochas ou animais. Os latinos se referiam a “Numina” (espíritos) em grutas sagradas. Os árabes consideravam que uma paisagem era povoada pelos “Jinn”. Naturalmente, as pessoas queriam entrar em contato com essa realidade para obter poderes e favores, mas também queriam apenas admira-la, demonstrar respeito e gratidão. Ao personalizar as forças ocultas na natureza e fazer delas deuses associados ao sol, ao vento, o mar ou as estrelas, mas com características humanas, estavam expressando sua afinidade com o Invisível e com o mundo a sua volta.

Rudolph Otto, historiador alemão da religião que publicou seu importante livro “A Idéia do Sagrado” em 1917, acreditava que esse senso do numinoso era fundamental para a religião. Precedia qualquer tipo de desejo de explicar a origem do mundo ou de encontrar bases para a conduta ética. O poder numinoso era sentido pelos seres humanos de modos diferentes – às vezes, inspirava excitação, às vezes, uma calma profunda. Às vezes, as pessoas sentiam temor, respeito e humildade em presença da Força misteriosa inerente a todo aspecto da vida. Quando os seres humanos começaram a criar seus mitos e a adorar seus deuses, não estavam buscando explicação literal para fenômenos naturais. As histórias, esculturas e pinturas rupestres simbólicas eram uma tentativa de expressar sua perplexidade e relacionar suas próprias vidas com esse Mistério profundo. Na verdade, poetas, pintores e músicos são muitas vezes impelidos por um desejo semelhante, hoje. No período paleolítico, por exemplo, quando a agricultura estava se desenvolvendo, o culto da Deusa Mãe expressava a percepção de que a fertilidade que transformava a vida humana era de fato sagrada.

Representação neolítica da "deusa mãe"

Os artistas esculpiram aquelas estatuetas mostrando uma mulher nua e grávida, que os arqueólogos encontram por toda a Europa, Oriente Médio e Índia. A Grande Mãe continuou sendo imaginativamente importante por muitos séculos. Como o antigo Sumo Deus, foi absorvida em panteões posteriores e assumiu seu lugar entre as divindades ancestrais. Era em geral um dos deuses mais poderosos, com certeza lhe era atribuída mais importância que ao Sumo Deus, que continuava sendo uma figura meio vaga. Chamavam-na Inana na antiga Suméria, Ishtar na Babilônia, Anat em Canaã, Ísis no Egito e Afrodite na Grécia, e histórias notavelmente semelhantes foram imaginadas em todas essas culturas para expressar o papel dela na vida espiritual das pessoas. Esses mitos provavelmente não se destinavam a ser tomados literalmente, mas eram tentativas metafóricas de descrever uma realidade demasiado complexa e fugidia para ser expressa de outra maneira. Essas histórias dramáticas e evocativas de deuses e deusas ajudaram as pessoas a articular sua percepção das forças, poderosas mas invisíveis, que as cercavam.


Bibliografia:
SCHMIDT, Wilhelm. “The Origin of the Idea of God". New York: Ernest Brandewie - Worldcat Librarie, 1912;
ARMSTRONG, Karen. A History of God - The 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.