quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Judaísmo - conclusão

O "menorah" - um dos mais conhecidos símbolos judaicos

Sinagoga

A sinagoga é o local das reuniões religiosas da comunidade judaica, hábito adquirido após a conquista de Judá pela Babilônia e a destruição do Templo de Jerusalém. Com a inexistência de um local de culto, cada comunidade desenvolveu seu local de reuniões, que após a construção do Segundo Templo tornou-se os centros de vida comunitária das comunidades da Diáspora. Na estrutura da sinagoga destaca-se o rabino, líder espiritual dentro da comunidade judaica e o chazan (cantor litúrgico).


Vida comunitária

"Vida comunitária judaica" é o como se chama a organização das diferentes comunidades judaicas no mundo. Há variações de locais e costumes, mas geralmente as comunidades contam com um sistema de regras comunais e religiosas, um conselho para julgamento e um centro comunal com local para estudo. No entanto, a família é considerada o principal elemento da vida comunitária, e ao lado do mandamento de Crescei e Multiplicai leva ao desestímulo de práticas ascéticas como o celibato, apesar da existência, através da História, de algumas correntes que promovessem esta renúncia.


Ciclo de vida judaico

# Brit milá é a cerimônia de boas-vindas aos bebés do sexo masculino à Aliança com D’us, através do ritual da circuncisão.

# Zeved habat é a cerimônia de boas-vindas aos bebés do sexo feminino na tradição sefaradi.

# B'nai Mitzvá é a celebração da transição da infância à maioridade, e por se tornar o "novo adulto" responsável, daí em diante, por seguir a "Halakhá" (literalmente 'Caminhar', é um conjunto de regras para a vida religiosa). É realizada, para as meninas, quando completam 12 anos, e para os meninos aos 13 anos.

# O Casamento Judaico, com todas os seus rituais de significado

# Luto - O judaísmo tem práticas de luto em várias etapas. À primeira etapa (observada durante uma semana) chama-se “Shiv'á”, à segunda etapa (observada durante um mês) chama-se “Sheloshim” e, para aqueles que perderam um dos progenitores, existe uma terceira etapa, a “Avelut Yod Bet Chódesh”, que é observada durante um ano.


Cherem

O Cherem é a mais alta censura eclesiástica na comunidade judaica. É a exclusão total da pessoa da comunidade judaica. Exceto em casos raros que tiveram lugar entre os judeus ultra-ortodoxos, o Cherem deixou de se praticar depois do iluminismo, quando as comunidades judaicas locais perderam a autonomia de que dispunham anteriormente e os judeus foram integrados nas nações gentias em que viviam.


Cultura judaica

A cultura judaica lida com os diversos aspectos culturais das comunidades judaicas, oriundos da prática do judaísmo, de sua integração aos diversos povos e culturas no mundo, assim como assimilação dos costumes destes. Entre os principais aspectos da cultura judaica podemos enfatizar os idiomas, as vestimentas e a alimentação (Cashrut).
Vestimentas - O judaísmo possui algumas tradições religiosas e culturais em relação à vestimentas, dentre as quais podemos destacar o “kipá”, os “tefilim”, o “talit” e o “tzitzit”. O kipá, espécie de pequeno chapeuzinho que os judeus usam na nuca, é um símbolo distintivo de Temor a D’us, usado principalmente pelos judeus rabínicos. “Tefilim” significa, literalmente, ‘prece’, e é o nome dado às duas caixinhas de couro dentro das quais está contido um pergaminho com quatro trechos da Torá (Êxodo 13:1-10 / Êxodo 13:11-16 / Deuteronômio 6:4-9 / Deuteronômio 11:13-21). Usando-se tiras de couro de animal “kasher” (‘puro’ ou ‘apropriado’), prende-se uma caixinha no braço esquerdo, para que fique próxima do coração (‘shel yad’), e enrola-se uma das tiras na mão esquerda, e a outra caixinha na testa, entre os olhos, (‘shel rosh’). O talit é um acessório religioso judaico em forma de um xale feito de seda, lã (mais caro e elegante que o de seda) ou linho, tendo em suas extremidades as tsitsiot (franjas). Ele é usado como uma cobertura na hora das preces judaicas,Tzitzit é o nome dado à franjas do talit, que servem como meio de lembrança dos mandamentos de Deus.


Calendário judaico

Baseados na Torá, a maior parte das ramificações judaicas segue o calendário lunar. O calendário judaico rabínico é contado desde 3761 a.C. O Ano Novo judaico, chamado “Rosh Hashaná”, acontece no primeiro ou no segundo dia do mês hebreu de “Tishri”, que pode cair em setembro ou outubro. Os anos comuns, com doze meses, podem ter 353, 354 e 355 dias, enquanto os bissextos, de treze meses, 383, 384 ou 385 dias.

Diversas festividades são baseados neste calendário: entre elas as de “Rosh Hashaná” (‘Ano Novo’), “Pessach” (‘Páscoa’), “Shavuót” (‘Festa das Colheitas’ ou ‘das Primícias’), “Yom Kipur” (‘Dia do Perdão’) e “Sucót” (‘Festival dos Tabernáculos’ ou ‘das Cabanas’). As diversas comunidades também seguem datas festivas ou de jejum e oração conforme suas tradições. Com a criação do Estado de Israel diversas datas comemorativas de cunho nacional foram incorporadas às festividades da maioria das comunidades judaicas.


Língua hebraica

O hebraico, o “Lashon haKodesh” (‘A Língua Sagrada’) é o principal idioma utilizado no judaísmo, utilizado como língua litúrgica durante séculos. Foi revivido como um idioma de uso corrente no século XIX e utilizado atualmente como idioma oficial no Estado de Israel. No entanto diversas comunidades judaicas utilizam outros idiomas cuja origem em sua maioria surgem da mistura do hebraico com idiomas locais.

Judeus ortodoxos oram diante do que restou do segundo Templo de Jerusalém


Crença messiânica e escatologia judaica

O termo “escatologia judaica” refere-se às diferentes interpretações judaicas dadas aos temas relacionados ao futuro: ainda que, segundo a Torá, este tema não seja tão desenvolvido no judaísmo primitivo, ele se desenvolveu após o retorno do Exílio em Babilônia. O profetismo e o nacionalismo judaico formariam a base da escatologia judaica. Os conceitos sobre o Messias e o “Olam Habá” (‘Mundo Vindouro’), para o qual os justos ressuscitarão e no qual todas as nações submeter-se-hão a YHWH e à Torá, e na qual Israel ocupará lugar de proeminência.


O Messias

Dentro do judaísmo, a doutrina do Messias é assunto que pode variar conforme a ramificação. Historicamente diversos personagens foram chamados de “Messias” (do hebraico ‘Ungido’), que não assume o mesmo sentido habitual do cristianismo no sentido de "Salvador”, digno de adoração. O conceito do Messias não aparece na Torá, e por isso mesmo recebe interpretações diferentes de acordo com cada ramificação.

A maior parte dos judeus crê no Messias como um homem judeu (em algumas ramificações é considerado que viria da tribo de Yehudá e da descendência do rei David) que reinará sobre Israel, reconstruirá a nação fazendo com que todos os judeus retornem à Terra Santa e unirá os povos em uma Era de paz e prosperidade sob o domínio de YHWH.

Algumas ramificações judaicas reformistas crêem, ainda, que a Era Messiânica não envolva necessariamente uma pessoa, mas sim que se trate de um período de paz, prosperidade e justiça na humanidade. Dão por isso particular importância ao conceito de "Tikkun Olam" (‘reparar o mundo’), ou seja, a prática de uma série de atitudes que conduzem a um mundo socialmente mais justo.

A Torá escrita

Os diversos eventos da história judaica levaram a uma valorização do estudo e da alfabetização dos membros da comunidade judaica. Na Diáspora, a busca de conexão com o judaísmo e a busca de não-assimilação com os costumes gentílicos (não-judeus) levaram a uma ênfase na necessidade da educação e alfabetização desde a infância, pelo que na maior parte das comunidades judaicas o analfabetismo é praticamente inexistente. Este pensamento levou à criação de uma vasta literatura, principalmente de uso religioso.
Dentro do judaísmo, a Escritura mais importante é a Torá, conforme estudado, o livro contendo a História da origem do mundo, do homem e do povo de Israel, assim como os Mandamentos de obediência a D’us. Para a maior parte das ramificações judaicas, acrescenta-se a história de Israel e as palavras dos profetas israelitas até a construção do Segundo Templo, com sua literatura relacionada, que compiladas na época do retorno de Babilônia, constituíram o que conhecemos como Tanakh, conhecido pelos não-judeus como Antigo Testamento.

Os judeus rabinitas crêem que Moisés recebeu, além da Torá escrita, uma tradição oral que serviria como um complemento da primeira, e que seria passada de geração em geração desde Moisés, e que viria a ser compilada no século IV d.C. como o Talmud. Os judeus caraítas recusam estes textos. No judaísmo, cada ramificação tem seus próprios textos e livros


Judaísmo hoje

No Judaísmo Reformista, as orações são, em geral, feitas na língua vernácula. Homens e mulheres desempenham o mesmo papel no culto. Na maior parte das nações ocidentais, como Estados Unidos, Reino Unido, Israel e África do Sul, muitos judeus secularizados deixaram há muito de participar nos deveres religiosos. Muitos deles lembram-se de ter tido avôs religiosos, mas cresceram em lares onde a educação e observância judaicas já não eram prioridade. Desenvolveram sentimentos ambivalentes no que toca aos seus deveres religiosos. Por um lado, tendem a agarrar-se às suas tradições por razões de identidade, mas por outro lado, as influências da mentalidade ocidental, vida quotidiana e pressões sociais tendem a afastá-los do judaísmo. Estudos recentes feitos em judeus americanos indicam que muitas pessoas que se identificam como de herança judaica já não se identificam enquanto membros da religião conhecida como judaísmo. As várias seitas judaicas nos EUA e no Canadá encaram este fato como uma situação de crise, e têm sérias preocupações com as crescentes taxas de casamentos mistos e assimilação entre a comunidade judaica. Uma vez que os judeus americanos têm vindo a casar mais tarde do que acontecia antigamente, têm vindo a ter menos filhos, e a taxa de nascimentos entre os judeus americanos desceu de mais de 2.0 para 1.7 - a taxa de substituição, isto é, o número necessário para que a quantidade atual se mantivesse, seria 2.1.

Mas, nos últimos 50 anos, todas as principais seitas judaicas tradicionais têm assistido um aumento de popularidade, com um número crescente de jovens judeus a participar na educação judaica, a aderir às sinagogas e a se tornarem (em graus diversos) mais observantes das tradições. Existe um artigo separado sobre o movimento "Baal Teshuva", o movimento dos judeus que regressam à observação do judaísmo.


Mais imagens sobre Judaísmo aqui.


Fontes e bibliografia:
Profº Gustavo Pamplona;
Profº J. Maurício Cavalcanti Sarinho;
“This is My Beloved, This is My Friend: A Rabbinic Letter on Intimate Relations”, 1996 - Elliot N. Dorff (The Rabbinical Assembly);
CaféTorah.Com;
VisãoJudaica.Com.


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Judaísmo - parte 2

O desenvolvimento do judaísmo hassídico

O judaísmo hassídico (ou chassídico) foi fundado por Israel ben Eliezer (1700-1760), também conhecido por Ba'al Shem Tov, ou Besht. Os seus discípulos atraíram muitos seguidores, e eles próprios estabeleceram numerosas seitas hassídicas na Europa. O judaísmo hassídico acabou por se transformar no modo de vida de muitos judeus na Europa, e chegou aos Estados Unidos durante as grandes vagas de emigração judaica na década de 1880.

Algum tempo antes, tinha havido um sério cisma entre os judeus hassídicos e não-hassídicos. Os judeus europeus que rejeitavam o movimento hassídico eram chamados pelos "hasidim" ('fiéis') de "mitnagdim", (literalmente 'contrários', 'oponentes'). Alguns dos motivos para a rejeição do judaísmo hassídico: a exibição opressiva da prece hassídica, as suas imputações não tradicionais de que os seus líderes eram infalíveis e alegadamente operavam milagres, a preocupação com a possibilidade de o movimento se transformar numa seita messiânica. Desde então, todas as seitas do judaísmo hassídico foram absorvidas pela corrente principal do judaísmo ortodoxo, e em particular pelo judaísmo ultra-ortodoxo.


O desenvolvimento das seitas judaicas modernas em resposta ao Iluminismo

Como sabemos, nos finais do século XVIII, a Europa foi varrida por um conjunto de movimentos intelectuais, sociais e políticos conhecidos pelo nome de Iluminismo. O judaísmo desenvolveu-se em várias seitas distintas, em resposta a este fenômeno sem precedentes: o judaísmo reformista e o judaísmo liberal, muitas formas de judaísmo ortodoxo e judaísmo conservador e ainda uma certa quantidade de grupos menores.


Ramificações do judaísmo

O Muro Ocidental em Jerusalém é o que resta do Segundo Templo. Nos dois últimos séculos, a comunidade judaica dividiu-se numa série de denominações; cada uma delas tem uma visão diferente sobre os princípios que um judeu deve seguir e como deve viver a sua vida. Apesar das diferenças, existe uma certa unidade nas várias denominações. O judaísmo rabínico, surgido do movimento dos fariseus após a destruição do Segundo Templo, e que aceita a tradição oral além da Torá escrita, é o único que hoje em dia é reconhecido oficialmente como judaísmo, e é comumente dividido nos seguintes movimentos:

# Judaísmo Ortodoxo - considera que a Torá foi escrita por D’us, que a ditou a Moisés, sendo as suas leis imutáveis. Os judeus ortodoxos consideram o "Shulkhan Arukh" (compilação das leis do Talmud do século XVI, pelo rabino Joseph Caro) como a codificação definitiva da lei judaica. O judaísmo ortodoxo exprime-se informalmente através de dois grupos - 1) judaísmo moderno ortodoxo e 2) Judaísmo Haredi, mais conhecido como "judaísmo ultraortodoxo", termo considerado ofensivo pelos seus adeptos.

# Judaísmo Hassídico ou Chassídico - descrito acima, é um subgrupo do judaísmo Haredi.

# Judaísmo Masorti - conhecido nos Estados Unidos por "judaísmo conservador"; desenvolveu-se na Europa e EUA no século XIX, em resultado das mudanças introduzidas pelo Iluminismo e a emancipação dos judeus. Caracteriza-se por um compromisso em seguir as leis e práticas do judaísmo tradicional, como o Shabbat (guardar o sábado) e o Cashrut (conjunto de leis alimentares, o alimento ‘casher’, que representa o encontro do material com o espiritual), uma atitude positiva em relação à cultura moderna e uma aceitação dos métodos rabínicos tradicionais de estudo das escrituras, bem como o recurso a modernas práticas de crítica textual. Considera que o judaísmo não é uma fé estática, mas uma religião que se adapta às novas condições. Para o judaísmo conservador, a Torá foi escrita por profetas inspirados por D’us, mas considera não se tratar de um documento da sua autoria.

# Judaísmo Reformista - constituiu-se na Alemanha, também em resposta ao Iluminismo. Rejeita a visão de que a lei judaica deva ser seguida pelo individuo de forma obrigatória, afirmando a soberania individual sobre o que observar. De início este movimento rejeitou práticas como a circuncisão, dando ênfase aos ensinamentos éticos dos profetas; as orações eram realizadas na língua vernácula. Hoje em dia, algumas congregações reformistas voltaram a usar o hebraico como língua das orações, a circuncisão é obrigatória e a Cashrut, estimulada.

# Judaísmo Reconstrucionista - formou-se entre a década de vinte e quarenta do século XX por Mordecai Kaplan, um rabino inicialmente conservador que mais tarde deu ênfase à reinterpretação do judaísmo em termos contemporâneos. À semelhança do judaísmo reformista não considera que a lei judaica deva ser suprema, mas ao mesmo tempo considera que as práticas individuais devem ser tomadas no contexto do consenso comum.

Para além destes grupos existem ainda os judeus não praticantes ou laicos, que não têm fé religiosa mas ainda assim mantêm culturalmente costumes judaicos, e o judaísmo humanístico, que valoriza mais a cultura e história judaica.

Judeus ortodoxos

Doutrinas do judaísmo

Surgiram variadas formulações das crenças judaicas, a maioria das quais com muito em comum entre si, mas divergentes em vários aspectos. Uma comparação entre várias dessas formulações mostra um elevado grau de tolerância pelas diferentes perspectivas teológicas. Segue um sumário das crenças judaicas.


Monoteísmo

O príncipio básico do judaísmo é a unicidade absoluta de YHWH como D’us e Criador, Onipotente, Onisciente, Onipresente, que influencia todo o universo, que não pode ser limitado. A idolatria, o pecado mais mortal. A afirmação da crença no monoteísmo manifesta-se na profissão de fé judaica conhecida como “Shemá”:

"Shemá Israel A-do-nai Elokenu A-do-nai Ehad...":

“Ouve Israel, A-do-nai é o nosso D'us, A-do-nai é Um. Ouve, atentamente, ó Israel, preste atenção, abre totalmente a tua percepção, silenciando completamente a mente, medita sobre o que estiveres a pronunciar, interioriza e absorve a mensagem de tal forma que se torne parte da tua própria essência... D'us é Um e é Único, e Ele é o nosso D'us.”

Assim, qualquer expressão de politeísmo é fortemente negada pelo judaísmo, assim como é proibido seguir ou oferecer prece à outro que não seja D'us YHWH. Conforme o relacionamento de YHWH com Israel, o judaísmo enfatiza certos aspectos da divindade chamando-o por Títulos diferenciados (próximo post - Nomes de Deus no Judaísmo).

O judaísmo posterior ao exílio no entanto assumiu a existência de uma corte espiritual na qual D’us seria uma espécie de Rei, o qual controlaria seres para execução de sua vontade (anjos). Esta visão era aceita pelos fariseus e passada para o posterior judaísmo rabínico; no entanto era desprezada pelos saduceus.


A Revelação

O judaísmo defende uma relação especial entre D’us e o povo judeu, manifesta através de uma revelação contínua de geração a geração. O judaísmo crê que a Torá é a Revelação Eterna, dada por D’us aos judeus. Os judeus rabinitas e caraítas também aceitam que homens através da história judaica foram inspirados pela Profecia, sendo que muitas destas estão explícitas nos "Neviim" ('Profetas') e nos "Kethuvim" ('Escritos'). O conjunto destas três partes (Torá, Neviin e Kethuvim - Lei, Profetas e Escritos) formam as Escrituras Hebraicas conhecidas como Tanakh.

A profecia dentro do judaísmo não tem o caráter exclusivamente adivinhatório das outras religiões, mas manifesta-se na mensagem da Divindade para com seu povo e o mundo, que poderia assumir o sentido de advertência, julgamento ou revelação quanto à Vontade de D’eus. Esta profecia tem um lugar especial desde o principio do mosaísmo, seguindo pelas diversas escolas de profetas posteriores (que serviam como conselheiros dos reis) e tendo seu auge com a época dos dois reinos. Oficialmente se reconhece que a época dos profetas encerra-se na época do exílio babilônico e do retorno a Judá. No entanto, o judaísmo reconheceu diversos profetas durante a época do Segundo Templo, e durante o posterior período rabínico.

Crianças na sinagoga

Metafísica e vida pós-morte

O entendimento dos conceitos de corpo, alma e espírito no judaísmo varia conforme a época e as diversas seitas judaicas. O Tanakh não faz uma distinção teológica destes, usando o termo que geralmente é traduzido como alma (néfesh) para se referir à vida e o termo geralmente traduzido como espírito (ruach) para se referir a “fôlego”. Deste modo, as interpretações dos diversos grupos são muitas vezes conflitantes, e muitos estudiosos preferem não discorrer sobre o tema.

Assim, como a principal referência da fé judaica (Tanakh), excetuando alguns pontos poéticos e controversos, jamais faz referência à vida além da morte, os saduceus posteriormente rejeitavam estas especulações. Porém, após o exílio em Babilônia, os judeus assimilaram as doutrinas da imortalidade da alma, da ressurreição e do juízo final, que se constituíram importante ensino por parte dos fariseus.

Nas atuais correntes do judaísmo, as afirmações sobre o que acontece após a morte são postulados e não afirmações, e varia-se a interpretação dada ao que ocorre após a morte, e se existe ou não ressurreição. A quase totalidade das correntes crê em uma ressurreição no mundo vindouro ('Olam Habá'), enquanto que uma pequena parcela crê numa espécie de reencarnação, sendo que o sentido do que seja reencarnação varia de acordo com a ramificação e é sempre muito diferente da visão hindu.


Quem é considerado judeu

A lei judaica considera judeu todo aquele que nasceu de mãe judia ou se converteu, de acordo com essa mesma lei, ao judaísmo rabínico. Algumas ramificações como o Reformismo e o Reconstrucionismo aceitam também a linhagem patrilinear, desde que o filho tenha sido criado e educado em meio judaico. Um judeu que deixe de praticar o judaísmo e se transforme num judeu não-praticante continua a ser considerado judeu. Um judeu que não aceite os princípios de fé judaicos e se torne agnóstico ou ateu também continua a ser considerado judeu. No entanto, se um judeu se converte a outra religião ou ainda se afirma "judeu messiânico” (seita evangélica) perde seu lugar como membro da comunidade judaica e transforma-se num apóstata. Segundo a tradição, a sua família e amigos tomam luto por ele, pois para um judeu abandonar a religião é como se morresse (nem sempre isto ocorre, mas a pessoa é tida como alguém não pertencente à comunidade). Essa pessoa, caso pretenda retornar ao judaísmo, não precisa se converter, de acordo com a maior parte das autoridades em lei judaica.

As pessoas que desejam se converter ao judaísmo devem aderir aos princípios e tradições judaicas. Os homens têm de passar pelo ritual do “Brit Milá” (‘circuncisão’). Qualquer convertido tem de passar ainda pelo ritual da “Mikvá” (‘banho ritual’). Os judeus ortodoxos reconhecem apenas conversões feitas por seus tribunais rabínicos, seja em Israel ou em outros locais. As comunidades reformistas e liberais também exigem a adesão aos princípios e tradições judaicos de acordo com os critérios estipulados em cada movimento. Enquanto as conversões autorizadas por tribunais rabínicos ortodoxos são aceitas como válidas por todas as correntes do Judaísmo. Aquelas feitas de acordo com as correntes Reformista ou Conservadora, são aceitas no Estado de Israel e em todas as comunidades judaicas não-ortodoxas no mundo inteiro (mais de 80% dos judeus do planeta), mas rejeitadas pelo movimento ortodoxo.


Fontes e bibliografia:
Profº Gustavo Pamplona
Profº J. Maurício Cavalcanti Sarinho
Rabi Menachem Mendel Schneerson
Comunidade Shemá Israel



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Judaísmo

Judaísmo (vindo do hebraico 'Yehudá') é o nome dado à religião do povo judeu, a mais antiga das chamadas Três Grandes Religiões Monoteístas (ao lado do cristianismo e do islamismo). Surgido da religião mosaica (Moisés), apesar das ramificações, defende um conjunto de doutrinas bem definidas que o distingue inequivocamente de todas as outras religiões da antiguidade: a crença monoteísta e os elevados padrões éticos, morais e ascéticos.

YHWH, o Deus único, ou "D'us", o Criador, às vezes chamado "Adonai" ('Meu Senhor'), ou ainda "HaShem", "o Nome" (Nomes de Deus no judaísmo - próximo post), elege Israel como o povo que receberá a Revelação da Torá - os mandamentos de D'us. Dentro da visão judaica de mundo, D'us é um Criador ativo no Universo, que influencia a sociedade humana. Há diversas tradições e doutrinas dentro do judaísmo, criadas e desenvolvidas conforme o tempo e os eventos históricos sobre a comunidade judaica, os quais são seguidos em maior ou em menor grau pelas diversas ramificações judaicas conforme sua interpretação do judaísmo.

Hoje o judaísmo é praticado por cerca de quinze milhões de pessoas em todo o mundo (senso 2006). Não é uma religião de conversão, e atualmente respeita a pluralidade religiosa, desde que tal não venha a ferir os mandamentos do judaísmo. Alguns ramos defendem que no período messiânico todos os povos reconhecerão YHWH como único D'us e submeter-se-ão a Torá.


Origem e história

De acordo com a visão religiosa, o judaísmo é o Caminho de vida ordenado pelo Criador, através do Pacto Eterno com o patriarca Abraão e sua descendência. Segundo estudiosos, o judaísmo é fruto da fusão e evolução de mitologias e costumes tribais da região do Levante (Israel e arredores), unificadas posteriormente mediante a consciência de um nacionalismo judaico. Ainda que esteja intimamente relacionada à história do povo judeu, a história do judaísmo se distingue por enfatizar a evolução da religião e como esta influenciou o povo judeu e o mundo.


Mosaísmo e crenças israelitas pré-exílio

Ainda que o judaísmo só tenha vindo a ser chamado assim após o retorno do Cativeiro da Babilônia, a sua origem está associada ao chamado de Abraão à promessa de YHWH. Abraão, originário de Ur (atualmente Iraque, antiga Caldéia), foi o defensor do monoteísmo em meio a um mundo de idolatria, e pela sua fidelidade à YHWH teria sido recompensado com a promessa de que teria um filho, Isaac, do qual levantaria um povo que herdaria a Terra da promessa. Abraão é chamado de primeiro "hebreu" (no hebraico - 'aquele que vem do outro lado'), e passa a viver uma vida nômade entre os povos de Canaã.

De acordo com a Bíblia, YHWH não seria apenas o Senhor de Israel, mas sim o Príncipio UNO que criou o mundo, e que já Se havia revelado a outros justos antes de Abraão. Mas com Abraão inicia-se um Pacto de obediência, que deveria ser seguido por todos os seus descendentes, se quisessem usufruir das Bençãos de YHWH. Alguns rituais tribais seguidos pelos membros da família de Abraão seriam depois incorporados à legislação religiosa judaica.

Com a libertação dos descendentes de Israel da terra do Egito pelas mãos de Moisés, seria organizado pela primeira vez o culto ao D'us UNO. Ao contrário de outras religiões antropomórficas, YHWH é tido como uma Energia transcendente, toda-poderosa, ilimitada, que influencia a sociedade humana e revela aos israelitas sua "Torá", os mandamentos e orientações de como praticar uma vida justa. Mas a religião mosaica pré-judaísmo só atingiria sua maturação com o início da monarquia israelita e sua subseqüente divisão em dois reinos: Yehuda (Judá) e Yisrael (Israel). Esta divisão marcaria uma separação entre os rituais religiosos dos reinos do norte e do sul que permanecem até hoje; entre judaísmo e judaísmo samaritano .

No entanto, as visões histórica e bíblica mostram que esta religião mosaica não era única e exclusiva. Conforme já estudado, durante todo o período pré-exílio algumas fontes nos informam que os israelistas adoravam diversas outras divindades, dos quais o mais proeminente era Baal. Enquanto a maioria dos religiosos aceita que a mistura entre os israelitas e os cananitas após a conquista de Canaã tenha corrompido a religião israelita, alguns estudiosos preferem aceitar que o mosaismo era mais uma das diversas crenças entre as tribos israelitas, que só viria a se firmar com os profetas e com o exílio.

A hierarquia e os rituais de culto mosaico seriam firmemente estabelecidos com a monarquia, com a elaboração das regras de sacerdócio e o estabelecinento dos padrões do culto com a contrução do Templo de Jerusalém. Este novo local de culto, substituto do antigo Tabernáculo portátil de Moisés (a Arca da Aliança, hoje 'Arca Perdida'), serviu como centro da religião judaica e foi de extrema importância, ainda que em meio a outros cultos estrangeiros, não só para judeus como para a formação dos padrões religiosos de toda a nossa civilização atual.


Exílio em Babilônia e o ínicio da Diáspora

Um elemento forte da religião pré-judaísmo é o surgimento dos profetas, homens de diversas camadas sociais que pregaram e anunciaram profecias da parte de D'us. Sua pregação e suas profecias, anunciando os castigos da desobediência para com D'us, cumpriram-se na destruição de Israel em 722 aC e na conquista de Judá pelos babilônios em 586 aC. Com a dispersão dos reinos israelitas, muitos judeus misturaram-se a outros povos, mas as comunidades israelitas remanescentes desenvolveram sua cultura e religião, criando o que conhecemos hoje como judaísmo.

O fortalecimento da comunidade e a descentralização do culto através da criação das sinagogas, além do estabelecimento de um conjunto de mandamentos que deveriam ser aprendidos pelos membros da comunidade e obedecidos em qualquer lugar em que vivessem, aliaram-se à esperança num novo reestabelecimento na Terra Prometida, dando aos judeus uma consciência messiânica. No entanto, com a liberação do retorno dos judeus para a Judéia, poucas comunidades retornaram à terra natal.


O Templo de Jerusalém

Desenho antigo (Christian v Adrichem) do Primeiro Templo de Jerusalém (Salomão)



Modelos representando o segundo Templo de Jerusalém (Herodes)

O Templo de Salomão (no hebraico 'Beit Hamiqdash'), foi o primeiro Templo em Jerusalém, construído no século XI aC, e funcionou como um local de culto religioso judaico central para a adoração a Javé, Deus de Israel, e onde se ofereciam os sacrifícios conhecidos como "korbanot". O Segundo Templo foi o que o povo judeu construiu após o regresso a Jerusalém, findo o exílio na Babilônia, no mesmo local onde o Templo de Salomão existira antes de ser destruído. Manteve-se erigido entre 515 a.C. e 70 DC, tendo sido, durante este período, o centro de culto e adoração do Judaísmo.

Com o retorno de algumas comunidades judaicas para a Judéia, uma renovação religiosa levou a diversos eventos que seriam fundamentais para o surgimento do judaísmo como religião mundial. Entre estes eventos estão a unificação das doutrinas mosaicas, o estabelecimento de um cânon das Escrituras, a reconstrução do Templo de Jerusalém e a adoção da noção de "povo judeu" como povo escolhido e através do qual seria redimida toda a humanidade.

A comunidade judaica da Judéia cresceu com relativa autonomia sob o domínio persa, mas a história judaica ganhou importância com a conquista da Palestina por Alexandre Magno em 332 aC. Com a morte de Alexandre, o seu império foi dividido entre seus generais, e a Judéia foi dominada pelos ptolomeus e depois pelos selêucidas, contra os quais os judeus moveram revoltas que culminaram em sua independência.

Com a independência e o domínio dos Macabeus como reis e sacerdotes, surgem as diversas ramificações do judaísmo da época do Segundo Templo, sendo as principais a dos fariseus, dos saduceus e dos essênios. As diversas polêmicas entre as várias divisões do judaísmo acabaram por levar à conquista da Judéia pelo Império romano em 63 aC.

O domínio romano sobre a Judéia foi, em todo, um período conturbado. Principalmente em relação aos diversos governadores e reis impostos sobre Roma, o que levou à Revolta judaica que culminou na destruição do Segundo Templo e de Jerusalém em 70 dC. Muitas revoltas judaicas explodiram em todo o Império romano, que culminaram com a Segunda revolta judaica sob o comando de Shimmon Bar-Kosiva e do rabino Akiva. O fracasso deste, em 135 dC, levou o Estado judeu à extinção. Depois disso, ele voltou a existir apenas em 1948.


O período do Segundo Templo

Por volta do primeiro século dC havia várias grandes seitas em disputa da liderança entre os judeus e, em geral, todas elas procuravam, de forma diversa, uma salvação messiânica em termos de autonomia nacional dentro do Império Romano: fariseus, saduceus, zelotes e essênios, entre outras. Entre estes grupos,os fariseus obtiveram grande influência dentro do judaísmo, já que após a destruição do Templo de Jerusalém a influência dos saduceus diminuiu. Os fariseus, que controlavam a maior parte das sinagogas, então, continuaram a promover a sua visão, que originaria o judaísmo rabínico. Os judeus rabínicos codificaram suas tradições orais nas obras conhecidas como Talmudes.

O ramo dos saduceus dividiu-se em diversos pequenos grupos, que no século VIII adotaram a rejeição pela lei oral dos fariseus/rabinos registrada na Mishná (e desenvolvida por rabinos mais recentes nos dois Talmudes), pretendendo confiar apenas no Tanakh (a Bíblia judaica - o Antigo Testamento). Esses judeus criaram o judaísmo caraíta, que ainda existe hoje em dia, embora o seu número de seguidores seja muito menor que o do judaísmo rabínico. Os judeus rabínicos defendem que os caraitas são judeus, mas que a sua religião é uma forma de judaísmo incompleta e errônea. Os caraítas defendem que os rabinitas são idólatras e necessitam retornar às escrituras originais. Os samaritanos continuaram a professar sua forma de judaísmo, e continuam a existir até os dias de hoje.

Ao longo do tempo, os judeus também foram-se diferenciando em grupos étnicos distintos: os asquenazitas - (da Europa de Leste e da Rússia), os sefarditas (de Espanha, Portugal e do Norte de África), os Judeus do Iêmen, da extremidade sul da península Arábica e diversos outros grupos. Esta divisão é cultural e não se baseia em qualquer disputa doutrinária, mas acabou levando a diferentes peculiaridades na visão de cada comunidade sobre a prática do judaísmo .


Judaísmo na Idade Média

O cristianismo, de certo modo, surgiu como ramificação messiânica do judaísmo no primeiro século dC. Após o cisma que levou à separação entre judaísmo e cristianismo, este último desenvolveu-se separadamente, e também foi perseguido pelo império romano. Mas com a adoção do cristianismo como religião do Império no século 4, a tendência a querer erradicar o paganismo e a visão do judaísmo como a religião que teria desprezado e assassinado Jesus Cristo levou a um constante choque entre os dois grupos, onde a política de converter judeus à força levava à expulsão, em caso de resistência. Ao contrário do que se imagina, esta visão anti-judaica era compartilhada por católicos e protestantes (surgidos no século XVI), estando entre estes últimos alguns dos maiores perseguidores do povo judeu na idade média:

"Sobre os judeus e suas mentiras" (em alemão 'Von den Juden und ihren Lügen' - imagem ao lado) é um tratado que foi escrito em Janeiro de 1543 pelo teólogo protestante Martinho Lutero (fundador do protestantismo), em que defende a perseguição contra os judeus, a destruição de seus bens religiosos, assim como o confisco do seu dinheiro(!). Ainda que inicialmente Lutero tenha tido uma visão mais favorável dos judeus, a recusa destes em se converter ao movimento protestante que se iniciava o levou a adotar diversas acusações duríssimas e incentivar um anti-semitismo que, juntamente com outras obras e idéias, pode ter servido de base ao nazismo (o texto foi citado pelos nazistas durante o Julgamento de Nuremberg para justificar a 'Solução Final').

E assim, os judeus tornaram-se vítimas de diversas acusações e perseguições por parte dos cristãos. A conversão ao judaísmo foi proibida e as comunidades judaicas relegadas à marginalidade ou expulsas de diversas nações. O judaísmo tornou-se então uma forma religiosa de resistência à dominação imposta pelas igrejas, desenvolvendo algumas das doutrinas exclusivistas de muitas tradições judaicas atuais.

Com o surgimento do Islam no século 7 dC e sua rápida ascensão entre diversas nações, inicia-se a relação deste com o judaísmo, caracterizado também por períodos de perseguição e outros de paz, no qual deve-se enfatizar a Era de Ouro do judaísmo na Espanha mulçumana.


Fontes e bibliografia:
Profº Gustavo Pamplona
Profº J. Maurício Cavalcanti Sarinho
Rabi Menachem Mendel Schneerson


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segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Origens da religião ocidental - conclusão

Josué diante dos Filhos de Israel - Gustave Doré

Após o Êxodo, muitos profetas vieram e advertiram o povo de Israel que não se esquecessem da promessa que haviam feito a Javé, de torná-lo seu único Deus, seu Elohim; e que em troca, poderiam desfrutar da única e eficaz proteção do “Senhor dos Exércitos” (‘Iahveh Sabaoth’). Estavam avisados de que, se quebrassem essa Aliança, seriam destruídos sem piedade.

Em Josué, livro do AT, descobrimos o que pode ser um texto anterior da celebração dessa Aliança entre Israel e seu Deus. As alianças eram tratados formais, com freqüência usados na política do Oriente Médio para comprometer duas partes. Seguia uma forma estabelecida: o texto do acordo começava apresentando o rei, que era o lado mais poderoso, e então traçava a história das relações entre as duas partes até o presente. Por fim, estabelecia os termos, condições e penalidades que se aplicariam se o acordo fosse ligado. Na aliança do século XIV entra o rei hitita Mursilis II e seu vassalo Duppi Tashed. O rei fazia as seguintes exigências: ”Não recorras a mais ninguém. Teus pais pargaram tributo no Egito; não farás tu isso... (...) De meu amigo serás amigo, e de meu inimigo serás inimigo”. A Bíblia diz que, quando os israelitas chegaram a Canaã e se juntarram a seus parentes, todos os descendentes de Abraão fizeram uma Aliança com Javé. A cerimônia foi conduzida pelos sucessor de Moisés, Josué, que representava Javé. O acordo segue o padrão tradicional: Javé foi apresentado; lembraram-se suas negociações anteriores com Abraão, Isaac e Jacó; depois se relataram os acontecimentos do Êxodo. Por fim, Josué estipulou os termos dos Acordo e exigiu o consentimento formal do povo de Israel reunido:

“Agora pois temei a Javé, e servi-o com sinceridade e verdade; e deitai fora os deuses aos quais serviram vossos pais d’além do rio e no Egito, e servi a Javé. Porém se vos parece mal aos vossos olhos servir a Javé, escolhei hoje a quem sirvais: se os deuses a quem serviram vossos pais, d’além do rio, ou os deuses dos amorreus, em cuja terra habitais; porém eu e a minha casa serviremos a Javé.” - Josué, 24:14-15

Foi dada ao povo tinha uma opção entre Javé e os deuses tradicionais de Canaã. Mas eles não hesitaram. Não havia outro como Javé, nenhuma outra divindade fora tão eficiente em favor de seus adoradores. Sua poderosa intervenção nos assuntos deles demonstrara que além de qualquer dúvida razoável Javé estava a altura da tarefa de ser seu Elohim; só iam adorar a ele, e abandonariam a todos os outros deuses. "Deitai pois agora fora os deuses estranhos que há no meio de vós” exclamou Josué, ”e inclinai o vosso coração a Javé, Deus de Israel” (Josué, 24:24).

Elias e a Carruagem que o arrebata aos Céus - Giuseppi Angeli

Mas a Bíblia mostra que o povo não foi fiel à Aliança. Lembravam-na nos tempos de guerra, quando precisavam da “especializada” proteção militar de Javé, mas em tempos tranquilos, adoravam Baal, Anat e Asherat, à maneira antiga. Embora o culto de Javé fosse fundamentalmente diferente em todas as suas tendências, às vezes expressava-se nos termos do velho paganismo. Os israelitas continuavam a adorar Javé nos antigos santuários que haviam herdado dos cananeus em Beth-El, Shiloh, Hebron, Belém e Dan. Quando o rei Salomão construiu o Templo de Jerusalém, era semelhante aos templos cananeus. Consistia de três áreas quadradas, que culminavam na sala menor, em forma de cubo, conhecida como Santo dos Santos, contendo a Arca da Aliança, o Altar portátil contendo as Tábuas da Lei e que os israelitas carregaram consigo durante os anos no deserto.

Templo começou a ser visto como a réplica da Corte celeste de Javé. Faziam sua festa de ano novo no outono, começando com a cerimônia do bode expiatório no Dia da Expiação, seguido cinco dias depois pelo Festival da Colheita da Festa dos Tabernáculos, que celebrava o início do ano agrícola.

O próprio rei Salomão foi um grande sincretista: teve muitas esposas pagãs, que adoravam seus próprios deuses, e negócios amistosos com os vizinhos pagãos. E sempre havia o perigo de o culto a Javé acabar submerso pelo paganismo popular. O perigo se tornou maior quando, em 869 aC, o rei Ahab ascendeu ao trono do reino de Israel do Norte. Sua esposa, Jezebel, filha do rei de Tiro e Sidônia (hoje Líbano), era uma ardente pagã, decidida a converter o país à religião de Baal. Ahab permaneceu fiel a Javé, mas não tentou conter o proselitismo de Jezebel.

Quando uma severa seca atingiu a terra, no fim de seu reinado, porém, um profeta chamado “Elias” (‘Javé é meu Deus!’) começou a vagar por lá, vestindo uma manta de pêlos e um traje de couro, a fulminar a deslealdade de Ahab. Até que convocou o rei e o povo para uma disputa final no monte Carmelo, entre Javé e Baal.

Ali, na presença de 450 profetas de Baal(!), discursou ao povo: por quanto tempo eles hesitariam? Então pediu que dois touros, um para si e outro para os profetas de Baal, fossem colocados em dois altares. Os dois lados iriam apelar a seus Deuses, para ver qual mandava fogo do céu para consumar o holocausto. “De acordo!”, gritou o povo. Os profetas de Baal eram muito respeitados. Invocaram o nome dele a manhã inteira, executando uma dança de cambaleios em torno do altar, gritando e rasgando-se com espadas e lanças. Mas “não ouve voz, não houve resposta; nenhuma atenção lhes foi dada”.

Então foi a vez de Elias. O povo se concentrou em torno do altar de Javé, enquanto o profeta cavava um fosso em volta do altar e o enchia de água, para torná-lo ainda mais difícil de pegar fogo. Depois clamou por Javé. Imediatamente, grande fogo desabou do céu e consumiu o altar e o touro, levando toda a água do fosso. O povo caiu de face ao chão: “Javé é DEUS!”, gritavam, “Javé é DEUS!”. Elias não foi um vencedor generoso. “Peguem os profetas de Baal!”, ordenou. Nenhum foi poupado: ele os levou para um vale próximo e os massacrou a todos.

Essas chocantes e assustadoras passagens do AT, que soam aos ouvidos modernos tão duras e excessivamente pragmáticas, servem para salientar a mensagem muito posterior de Jesus o Cristo, surgida nessa mesma tradição, trazendo, porém o seu completo paradoxo: Amor e perdão incondicionais.

Esses primeiros acontecimentos (míticos?) revelam que, desde o início, a religião dos israelitas exigia total repressão e negação de outras fés. Após o massacre, Elias subiu ao alto do monte Carmelo e sentou-se em prece, com a cabeça entre os joelhos, mandando seu criado de vez em quando examinar o horizonte. O criado acabou trazendo a notícia de que uma pequena nuvem se erguia sobre o mar ('do tamanho de um punho humano'). Então Elias mandou que ele fosse avisar o rei Ahab que voltasse depressa para casa, antes que a chuva o detivesse. Quase na mesma hora em que falava, o céu escureceu de nuvens negras e a chuva desabou em torrentes. Em Êxtase, Elias cobriu-se com a manta e correu ao lado da carruagem de Ahab. O texto demonstra que, mandando chuva, Javé demonstrava que Baal, o deus da tempestade, era na verdade inútil.

Temendo uma reação conta o massacre dos profetas, Elias escapou para a península do Sinai e refugiou-se no monte onde Deus se revelara para Moisés. Ali passou por uma teofania que manifestou a nova espiritualidade. Recebeu ordem de se abrigar na fenda de um rochedo, para abrigar-se do impacto divino:

"E eis que passava Javé, como também um grande e forte vento que fendia os montes e quebrava as rochas diante da Face de Javé; porém Javé não estava no vento; e depois do vento veio um terremoto. Também Javé não estava no terremoto. E depois do terremoto houve fogo. Mas também Javé não estava no fogo. E depois do fogo uma voz mansa e delicada. E sucedeu que, ouvindo-a, Elias envolveu seu rosto na sua capa.” - I Reis, 19:11-13

Ao contrário das divindades pagãs, Javé não estava em nenhuma das forças da natureza, mas num Reino à parte. Ele é experimentado no tudo mas também no nada. É sentido no quase imperceptível timbre de uma minúscula brisa, no paradoxo entre terremotos e furacões e uma voz suave e mansa. Está e não está, ao mesmo tempo, no estrondo das potências da natureza e num delicado silêncio expressado.


Fontes e bibliografia:
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong / "Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo", 1999 - idem (Companhia das Letras);
"A Social and Religious History of the Jews", 1967 - Salo Wittmeyer Baron (New York Publishing);
"The Biblical Archeologist #25", 1962 - George E Mendenhall (London Publishing);
"The Hebrew Conquest of Palestine", 1962 - Idem (Idem).


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Origens #5: A grande novidade

Os israelitas chamavam Javé de “o Deus de nossos pais”, mas percebemos na leitura do AT que existem grandes diferenças entre este e o El adorado pelos patriarcas. Talvez tenha Javé sido o Deus de outros povos, antes de o ser de Israel. Em todas as suas aparições anteriores a Moisés, Javé insiste em que é o Deus de Abraão, embora ele fosse originalmente chamado El Shaddai e embora esteja muito diferente daquele que se sentou e partilhou uma refeição com Abraão como seu amigo. Essa insistência em designar Javé como o mesmo Deus dos patriarcas pode ser a preservação de distantes ecos de um debate teológico muito anterior sobre a identidade do Deus de Moisés.

Jamais saberemos onde os israelitas descobriram Javé, se era ou não de fato uma divindade completamente nova. Também neste caso, seria uma questão muito importante para nós, mas não foi tão crucial para os autores bíblicos. Na Antiguidade pagã, os deuses muitas vezes eram fundidos e amalgamados, ou os deuses de uma localidade aceitos como idênticos aos de algum outro povo. A única coisa de que podemos ter certeza, nessa área, é que fosse qual fosse a proveniência, os acontecimentos do Êxodo fizeram de Javé o Deus definitivo do povo de Israel, e que Moisés conseguiu convencer os israelitas de que era o mesmo El amado por Abraão, Isaac e Jacó.

Foi em Midian que Moisés teve sua primeira visão de Javé. Todos os leitores da Bíblia (ou os que assistiram 'Os Dez Mandamentos') se lembrarão de que ele foi obrigado a fugir do Egito por ter matado um egípcio que maltratava um escravo israelita. Refugiou-se em Midian, casou-se ali, e foi quando cuidava das ovelhas de seu sogro que teve uma estranha visão: uma sarça que ardia sem ser consumida. Quando se aproximou para verificar, Javé chamou-o pelo seu nome e Moisés exclamou: “Eis-me aqui!” (‘bineni!’), resposta de todo profeta de Israel quando encontrava o Deus que exigia total atenção e lealdade. Então Deus se manifestou...

“...e disse: ‘Não te chegues para cá; tira os teus sapatos dos teus pés; porque o lugar em que estás é terra santa.’ Disse mais: ‘Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. E Moisés encobriu o seu rosto, porque temeu olhar para Deus.” - Êxodo, 3:5-6

Apesar da primeira das afirmações de que Javé é de fato o Deus de Abraão, começamos a perceber que Este é muito diferente da divindade que se apresentava como um homem comum aos antepassados de Moisés. Inspira terror e exige distância. Quando Moisés lhe pede o Nome, Javé responde com um jogo de palavras que demonstra o teor completamente singular e fora do normal daquele que lhe falava. Em vez de revelar seu nome diretamente, a resposta é: Eu Sou O Que Sou (‘Ehyeh Asher Ehyeh’ – uma expressão idiomática hebraica para expressar uma indefinição deliberada). Ele é o Ser Auto-Subsistente!

Para que possamos compreender a importância e o peso dessa revelação no texto bíblico, precisamos saber que a ainda rudimentar cultura hebraica não possuía uma dimensão assim metafísica nesse estágio - na verdade demoraria ainda quase dois mil anos para adquiri-la! Por isso, essas palavras, tão fortemente carregadas de transcendência, atribuídas a Deus no AT, simplesmente trazem uma novidade absolutamente inexplicável para o período histórico em que foi registrada. É um grande mistério, que estudiosos tentariam decifrar por milênios, sem sucesso. Contrariando todo o pragmatismo e objetividade dos textos do AT, no caso específico da definição da Identidade de Deus, toda lógica e todo racionalismo são deixados de lado. Não haveria discussão a respeito da Natureza de Deus, e com certeza nenhuma tentativa de manipulá-Lo, como os pagãos costumavam fazer quando recitavam os nomes de seus deuses. E isto é o exato oposto do que todas as religiões até então praticavam. - Cada uma delas se esforçava em tentar explicar, com todos os detalhes possíveis, quem e como era o seu deus, o que podia e o que não podia fazer, como agia e porque. Podemos afirmar que os israelitas, de algum modo, travaram contato com uma realidade até então ignorada pelo restante da humanidade, ou pelo menos de um modo até então desconhecido.

O EU SOU (YAHVEH, JAHVEH ou JAVÉ) é Incondicionado: Eu Sou O Que Sou. Não há esclarecimentos, nem tentativas para explicar o que não pode ser compreendido. A história da idéia de Deus, através da História da humanidade, nunca mais seria a mesma. A partir daí, não haveria nenhuma, absolutamente nenhuma religião no planeta Terra que não fosse influenciada por esse modo transcendente de compreender o divino. E Deus simplesmente promete a Moisés que participaria da História da humanidade.


Mas havia algo de muito difícil nessa nova sensação de poder experimentada por Moisés e seus primeiros seguidores: Se o velho Deus do Céu tinha sido experimentado como uma Força demasiado distante dos assuntos humanos, e as divindades posteriores, como Baal, Marduk e as deusas mães haviam-se aproximado da humanidade, Javé voltava a abrir um enorme fosso entre o homem e o mundo divino. Isso está explicitamente claro na história do Monte Sinai. Quando chegou à montanha, o povo recebeu ordens para purificar as roupas e manter-se à distância. Moisés advertiu os israelitas: “Cuidem de não subir a montanha nem tocar o pé dela. Quem tocar a montanha estará condenado à morte”. O povo recuou da montanha e Javé desceu em Fogo e Nuvens:

“E aconteceu no terceiro dia, ao amanhecer, que houve trovões e relâmpagos sobre o monte, e uma espessa nuvem, e um sonido de buzina mui forte, de maneira que estremeceu todo o povo que estava no acampamento. E Moisés levou o povo fora do acampamento ao encontro de Deus; e puseram-se ao pé do monte. E todo o monte Sinai fumegava, porque Javé descera sobre ele em fogo e o seu fumo subiu como fumo dum forno, e todo o monte tremia grandemente.” Êxodo, 19:16

Moisés subiu sozinho ao cume e recebeu as Tábuas da Lei. Em vez de experimentar os princípios de ordem, harmonia e justiça na própria natureza das coisas, como na visão pagã, a Lei agora é recebida do Alto. O Deus da História pode inspirar uma maior atenção no âmbito mundano, que é o Teatro de suas operações, e traz também a possibilidade de um profunda alienação desse mundo.

No texto final do Êxodo, editado no século V aC, diz-se que Deus fez uma Aliança com Moisés no monte Sinai (o que se supõe tenha ocorrido por volta de 1200 aC). Travou-se entre eruditos um grande debate sobre isso: alguns críticos acreditam que a Aliança só se tornou importante em Israel no século VII aC. Mas, qualquer que seja a data, a idéia da Aliança nos diz que os israelitas ainda não eram monoteístas, pois ela só faria sentido num cenário politeísta. Eles não acreditavam que Javé, o Deus do Sinai, era o único Deus, mas prometeram, em sua aliança, que iam ignorar todas as outras divindades e adorar só a ele. É muito difícil encontrar uma única declaração monoteísta em todo o Pentateuco (o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia - Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). Mesmo os Dez Mandamentos (no hebraico ‘Assêret Hadibrot’ = ‘Dez Palavras’ ou ‘Dez Falas’) entregues no monte Sinai reconhecem a existência de outros deuses: “Não Terás Outros Deuses Diante de Mim” (Êxodo, 20:2).

Moisés e as tábuas da Lei - Rembrandt

A adoração de uma única divindade era um passo sem precedentes: O faraó egípcio Akhenaton (post futuro) tentara implantar a adoração apenas ao deus-sol, ignorando todas as demais divindades do Egito, mas essa política foi rápida e imediatamente revertida por seus sucessores. Ignorar uma fonte potencial de bênçãos e poder parecia franca loucura, e a história posterior dos israelitas mostra que eles relutaram muito em deixar o culto aos muitos deuses. Para eles, Javé provara sua habilidade na guerra, mas não era um Deus da fertilidade. Quando se assentaram em Canaã, os israelitas parecem ter-se voltado instintivamente para o culto a Baal (deus da fertilidade), senhor de Canaã, que, acreditava-se, fazia as safras crescerem desde tempos imemoriais. Os profetas exortavam os israelitas a se manterem fiéis à Aliança, mas a maioria continuava a adorar Baal, Asherah e Anat à maneira tradicional. Na verdade a Bíblia nos diz que enquanto Moisés estava no monte Sinai, o resto do povo voltou-se para a velha religião pagã de Canaã. Fizeram um bezerro de ouro, efígie tradicional do El cananeu, e executaram os antigos ritos diante dele. A colocação desse incidente em clara justaposição à apavorante revelação no monte Sinai pode ter sido uma tentativa dos escritores finais do Pentateuco de indicar a seriedade da divisão em Israel. Profetas como Moisés pregavam a elevada religião de Javé, mas a maioria do povo queria os rituais antigos, com sua visão holística de unidade entre deuses, natureza e humanidade. As exigências do Deus de Abraão, Isaac e Jacó nunca foram fáceis.


Fontes e bibliografia:
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong / "Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo", 1999 - idem (Companhia das Letras);
"A Social and Religious History of the Jews", 1967 - Salo Wittmeyer Baron (New York Publishing);
"The Biblical Archeologist #25", 1962 - George E Mendenhall (London Publishing);
"The Hebrew Conquest of Palestine", 1962 - Idem (Idem).


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quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Origens #4: Da intolerância

Moisés e Aarão diante do Faraó - Mestre de Dinteville, 1537

A crença israelita em Deus era profundamente pragmática. Abraão e Jacó depositarem sua fé em El porque ele funcionava para eles. Não se sentaram para provar que ele existia; El não era uma abstração filosófica. No mundo da antiguidade, o mana (sensação intuitiva da existência de uma realidade superior, o ‘reino dos deuses’) era um fato da vida evidente por si mesmo, e um deus provava seu valor se pudesse transmitir isso efetivamente. Esse pragmatismo seria sempre um fator na história da idéia de Deus. As pessoas continuariam a adotar determinada concepção do divino porque funcionava para elas e não por ser científica ou filosófica/historicamente correta.

Anos mais tarde, Jacó voltou de Haran com suas esposas e família, e, ao reentrar na terra de Canaã, experimentou outra estranha epifania. No Vau de Jabbok, na Cisjordânia, encontrou um estranho com quem lutou durante toda a noite. Ao amanhecer, como a maioria dos seres espirituais, o adversário disse que tinha que partir, mas Jacó o segurou; não o soltaria enquanto não soubesse o seu nome. No mundo antigo, saber o nome de alguém dava à pessoa um certo poder sobre o outro, e o estranho pareceu relutante em revelar essa informação. Mas, à medida em que se desenrolava o estranho acontecimento, Jacó percebeu que o adversário não era outro que não o próprio El!

“E Jacó lhe perguntou, e disse: ‘Dá-me, peço-te, a saber o teu nome’. E ele disse: ‘Por que perguntas meu nome?’. E abençoou-o ali. E chamou Jacó o nome daquele lugar Peni-El (Rosto de El), porque dizia:’Tenho visto El (Deus) face a face, e a minha alma foi salva.” - Gênesis, 32: 30-31.

O espírito dessa epifania está mais próximo da Ilíada de Homero do que do monoteísmo judaico posterior, quando tal contato íntimo com o Divino teria soado como uma idéia blasfema.

Mas, embora mostrem os patriarcas encontrando seus deuses quase do mesmo modo que seus contemporâneos pagãos, essas primeiras narrativas introduzem na História da humanidade uma nova categoria de experiência religiosa. Por toda a Bíblia, Abraão é chamado “homem de fé”. Hoje, tendemos a definir fé como a aceitação intelectual de um credo, mas, como vimos, os autores bíblicos não viam a fé em Deus como uma crença abstrata ou metafísica. Quando louvam a fé de Abraão, não estão comentando sobre a ortodoxia dele, (a aceitação da teologia correta acerca de Deus), mas sua confiança, mais ou menos como quando dizemos que temos fé numa pessoa ou num ideal. Na Bíblia, Abraão é um homem de fé porque confia em que Deus cumprirá suas promessas, mesmo que pareçam absurdas. Como poderia Abraão ser o pai de uma grande nação quando sua esposa, Sara, era estéril? Na verdade, a própria idéia de que ela poderia ter um filho é tão inverossímil – Sara já passara da menopausa – que quando ouvem a promessa, Sara ri. Quando, contra todas as possibilidades, o filho nasce, eles o chamam de Isaac, um nome que pode significar “risada”.

Mas a felicidade parece acabar quando Deus faz uma apavorante exigência: Abraão deve sacrificar-lhe seu único filho.

O sacrifício humano era comum no mundo pagão. Era cruel, mas tinha uma lógica e uma explicação. Muitas vezes acreditava-se que o primeiro filho era um rebento de um deus. Ao gerar a criança, a energia do deus esgotava-se,e por isso, para reabastecê-la e assegurar a circulação de todo o mana existente, o primogênito era devolvido ao pai divino. O caso de Isaac era bem diferente, porém. Fora uma dádiva de Deus, mas não seu filho natural. Não havia motivo para sacrifício nem necessidade de se reabastecer energia. Na verdade, o sacrifício se transformaria num grande contra-senso toda a vida de Abraão, que se baseava na promessa de que ele seria o pai de uma grande nação. Pode-se notar que essa idéia de Deus já começava a ser concebida de um modo bastante diferente daquelas das demais divindades do mundo antigo. Este Deus não partilhava da situação humana; não apresentava as mesmas fraquezas e limitações de seus adoradores; não precisava do influxo de energia de homens e mulheres. Pertencia a uma categoria completamente nova, e tinha poderes acima de qualquer outra figura do panteão pagão.

Abraão decide confiar nesse Deus. Ele e Isaac partem numa viagem de três dias ao Monte Moriat, que seria mais tarde o local do Templo em Jerusalém. Isaac, que nada sabia da ordem divina, carregou ele mesmo a lenha para seu próprio holocausto. Só no último instante, quando Abraão já segurava o punhal, Deus revela que tudo fora apenas um teste, no qual ele passara com louvor. Abraão não questionou. Ele não temeu. Não duvidou da sabedoria de Deus nem mesmo quando Este lhe pediu para sacrificar o próprio filho. Assim, acabara de se mostrar digno da promessa divina e se tornar pai de uma poderosa nação, cuja descendência seria tão numerosa quanto as estrelas do céu ou os grãos de areia na praia.

Contudo, para ouvidos modernos, esta é uma história muito difícil de ser compreendida. Muitos a classificariam como horrível, entenderiam este Deus como um déspota e sádico, e muita gente hoje o rejeita justamente por conta de tais histórias. A história do Êxodo do Egito, quando Deus conduziu Moisés e os filhos de Israel à liberdade, é igualmente difícil para as sensibilidades modernas.

A história é bem conhecida, mesmo pelos não religiosos: o faraó relutava em deixar partir o povo de Israel; para forçá-lo, Deus faz com que se abatam sobre o Egito dez pavorosas pragas. O Nilo se transforma em sangue; a terra é devastada por gafanhotos e rãs; todo o país é mergulhado em trevas impenetráveis. Por fim, a mais pesada de todas as pragas – o Anjo da Morte é enviado para matar os primogênitos de todos os egípcios., poupando apenas os filhos dos hebreus escravizados. Depois disso, o faraó finalmente decide libertar os israelitas e deixá-los partir; mas logo em seguida muda de idéia e sai a persegui-los com seus exércitos. Alcança-os no mar dos Juncos*, mas Deus salva os israelitas abrindo o mar e permitindo que o cruzem a pé. Quando os egípcios seguem em seu encalço, as águas se fecham e afogam faraó e seus exércitos.

Este é o Deus em que acreditavam os antigos hebreus, os pais da religiosidade ocidental. Ele toma partido de um determinado grupo e não demonstra misericórdia para com aqueles que não são seus favoritos. Se a idéia de Deus continuasse nesses moldes, é bem provável que tivesse desaparecido há muito tempo na poeira de História. Porém, é muito importante saber que o mito final do Êxodo, como nos chegou nas páginas do AT, não pretende ser uma versão literal dos fatos. Traria, isto sim, uma mensagem clara para os povos do Oriente Médio, já acostumados a crer numa divindade tribal abrindo mares ao meio - ao contrário de Marduk e Baal, que realizaram seus feitos no tempo pré-histórico mítico, dizia-se que Javé dividira um mar físico, no mundo profano dos homens e no tempo histórico.

Não se faz muita tentativa de realismo: quando Moisés e Aarão visitam o faraó, os magos egípcios atiram seus bastões ao chão e estes se transformam em serpentes. Outro exemplo, quando o mar se abre em duas partes, os guerreiros do faraó não titubeiam em seguir o povo de Israel, em meio às águas prodigiosamente abertas, mesmo sabendo que um Deus poderosíssimo guardava aquela gente... Por essas e muitas outras passagens, percebe-se que os israelenses, ao contar a história do Êxodo, não estavam tão interessados em exatidão histórica quanto nós estaríamos. Ao contrário, tudo leva a crer que queriam realçar o significado dos fatos reais, quaisquer que tenham sido.

Mas veremos que Javé não continuou sendo o Deus terrível e impiedoso do Êxodo, embora o mito tenha sido importante em todas as três grandes religiões monoteístas. Por mais surpreendente que pareça, os israelenses iriam transformar essa mesma idéia de Deus num irreconhecível Símbolo de Transcendência e Misericórdia. Porém, a sangrenta história do Êxodo continuaria inspirando perigosos conceitos do divino, e uma teologia vingativa (como, infelizmente, ocorre até os dias de hoje). No século VII aC, o autor do livro do Deuteronômio (‘D’), usaria o velho mito para ilustrar a apavorante Teologia da Escolha, que em diferentes épocas desempenhou um papel fatídico na história das religiões. Como qualquer idéia humana, pode-se explorar e abusar da de Deus. O mito do Povo Eleito, a "escolha divina", muitas vezes inspirou uma teologia tacanha, tribal, desde a época do Deuteronomista até o fundamentalismo judaico, cristão e muçulmano infelizmente reinante em nossos dias.


* Uma curiosidade: Mar dos Juncos é o nome correto do "mar" que o povo de Israel atravessou, e não "Mar Vermelho", como ficou consagrado no ocidente devido a um erro de impressão na chamada "Bíblia do Rei Jaime", a primeira em tradução inglesa: "Sea of Reeds" (Mar dos Juncos) é o correto, e não "Red Sea" (Mar Vermelho).


Fontes e bibliografia:
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong / "Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo", 1999 - idem (Companhia das Letras);
"The Biblical Archeologist #25", 1962 - George E Mendenhall (London`Publishing);
"The Hebrew Conquest of Palestine", 1962 - Idem (Idem).


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domingo, 11 de novembro de 2007

Origens #3: No começo era a intimidade

O sonho de Jacó

Veremos que, séculos depois, os israelitas acharam o "mana" ou santidade de Javé uma experiência aterrorizante. No monte Sinai, por exemplo, aparece a Moisés numa erupção vulcânica de inspirar pavor, e os israelitas tiveram que se manter à distância. Em comparação, o El de Abrão é uma divindade bastante branda. Aparece-lhe como um amigo e às vezes até assume forma bastante humana. Esse tipo de aparição divina, conhecida como epifania, era bastante comum no mundo pagão da Antiguidade. Embora em geral não se esperasse que os deuses interviessem diretamente na vida dos mortais, alguns indivíduos privilegiados nos tempos míticos encontraram seus deuses face a face. A Ilíada está repleta dessas epifanias. Os deuses e deusas aparecem a gregos e troianos em sonhos, quando se acreditava que caía a divisão entre os mundos humano e divino. No final mesmo da Ilíada, Príamo é orientado para os navios gregos por um jovem encantador que acaba se revelando como Hermes. Quando os gregos lembravam a era de ouro de seus heróis, sentiam que eles tinham estado em estreito contato com os deuses, que eram, afinal de contas, da mesma natureza dos seres humanos.

Essas histórias de epifanias expressavam a visão holística pagã - quando o divino não era essencialmente distinto da natureza ou da humanidade, podia ser experimentado sem grande estardalhaço. O mundo vivia cheio de deuses e deusas, que se podia ver inesperadamente a qualquer momento, dobrando qualquer esquina, ou na pessoa de um estranho que passava. Aparentemente, a gente simples talvez acreditasse que esses encontros divinos eram possíveis em suas próprias vidas: isso pode explicar a estranha história do livro bíblico do NT (Novo Testamento) Atos dos Apóstolos, quando, já no século I aC, o apóstolo Paulo e seu discípulo Barnabas foram tomados como Zeus e Hermes pelo povo de Lystra, onde hoje é a Turquia.

Quase do mesmo modo, os israelitas lembravam sua era de ouro vendo Abraão, Isaac e Jacó vivendo em termos familiares com seu Deus. El dá-lhes conselhos amistosos, como um xeque ou chefe tribal da época: orienta suas errâncias, diz-lhes com quem casar-se e fala-lhes em sonhos. De vez em quando, eles parecem vê-lo em forma humana – uma idéia que mais tarde seria considerada anátema (heresia) para os israelitas. No capítulo 18 do Gênesis, o autor J nos diz que Deus apareceu a Abraão junto ao carvalho de Mamre, perto de Hebron. Abraão ergueu seus olhos e avistou três estranhos aproximando-se de sua tenda, na hora mais quente do dia. Com a típica cortesia do Oriente Médio, insistiu opara que eles se sentassem e descansassem, enquanto corria a preparar-lhes uma refeição. Durante a conversa, ficou sabendo, bastante naturalmente, que um daquele “homens” não era outro senão o seu Deus, a quem J sempre chama “Javé” (= “EU SOU”). Os outros dois homens revelaram-se anjos. No texto, ninguém parece particularmente surpreso com essa revelação.

Quando J escrevia, no século VIII aC, nenhum israelita esperaria “ver” Deus assim - a maioria teria achado a idéia no mínimo chocante. O autor E, contemporâneo de J, parece considerar inadequadas essas velhas histórias sobre a intimidade do patriarca com Deus. Quando E fala dos tratos de Abraão ou Jacó com Deus, prefere distanciar o fato e tornar as velhas lendas menos antropomórficas. Assim, dirá que Deus fala por Abraão por intermédio de um anjo. J, no entanto, não partilha desses escrúpulos, e mantém o antigo sabor dessas primitivas epifanias em sua versão.


Jacó também passou por várias epifanias. Numa ocasião, decidiu retornar a Haran, para arranjar uma esposa entre seus parentes de lá. Na primeira etapa da jornada, dormiu em Luz, perto do vale do Jordão, usando uma pedra como travesseiro. Nessa noite, sonhou com uma escada que se estendia entre a Terra e o Céu. Anjos subiam e desciam entre os reinos de Deus e do homem. Poderíamos nos lembrar do Zigurate de Marduk: no topo, suspenso por assim dizer entre céus e Terra, o homem podia encontrar seus deuses. No topo de sua escada, Jacó sonhou que via El, que o abençoava e repetia as promessas feitas a Abraão; os descendentes de Jacó se tornariam uma poderosa nação e possuiriam a terra de Canaã. Também fez uma promessa que causou significativa impressão em Jacó; a de acompaná-lo e guradá-lo, daquele dia em diante. Acontece que a religião pagã era muitas vezes territorial: um deus só tinha “jurisdição” numa determinada área, e era sempre sensato adorar as divindades locais quando se ia ao exterior. Mas El prometeu a Jacó que o protegeria quando ele deixasse Canaã e vagasse numa terra estranha: “Estou contigo e te guardarei, por onde quer que fores”. A história dessa epifania mostra que ali se começou a compreender uma implicação mais universal de um Deus único.

Quando acordou, Jacó compreendeu que passara a noite inadvertidamente num lugar santo, onde os homens podiam contatar o Ceú. “Na verdade, Javé está neste lugar, e eu nunca soube!”, diz ele, segundo J. Jacó estava inundado de um senso de maravilha que muitas vezes inspirou os pagãos quando encontravam o poder sagrado: ”Como este lugar inspira temor! É nada menos que uma Casa de Deus (Beth-El); este é o Portão do Céu!”. Então decidiu consagrar aquele solo santo à maneira pagã tradicional da região. Tomou a pedra que usara como travesseiro, colocou-a de pé e santificou-as com uma libação de óleo. Daí em diante o lugar não mais seria chamado Luz, mas Beth-El, a Casa de El ou Casa de Deus. Pedras em pé eram uma característica comum dos cultos cananeus, que floresceram em Beth-El até o século VIII aC. Embora israelitas posteriores tenham condenado vigorosamente esse tipo de religião, o santuário pagão de Beth-El estava associado na lenda inicial a Jacó e Deus.

Antes de deixar Beth-El, Jacó tinha decidido tornar o Deus que encontrara ali seu “Elohim”; este era um termo técnico, significando tudo que os deuses podiam significar para homens e mulheres. Ou seja, Jacó decidira que se El (ou Javé) podia de fato cuidar dele em Haran ou em qualquer outro lugar, era particularmente eficaz. Assim, em troca da proteção de El, fez dele seu Elohim, o único Deus que lhe importava.


Nota: O termo "pagão", todas as vezes que utilizado neste blog, refere-se ao termo culto da língua portuguesa que designa as religiões politeístas da antiguidade (Dicionário Priberan - Paganismo: antiga religião politeísta dos Gregos e Romanos; religião dos pagãos; os pagãos; politeísmo; idolatria). O uso feito da palavra neste espaço não tem, portanto, nenhuma conotação pejorativa.


Fontes e bibliografia:
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong / "Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo", 1999 - idem (Companhia das Letras);
"The Biblical Archeologist #25", 1962 - George E Mendenhall (London`Publishing).



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quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Origens #2: Abraão e o monoteísmo

O velho Abraaão: "Pai de uma Multidão"

Conforme exposto anteriormente, “J” e “E” são formas para se referir aos primeiros autores bíblicos desconhecidos - "J" se refere a Deus como "Javé" e "E" como "Elohim". Estudiosos identificam ainda mais dois autores desconhecidos no Antigo Testamento (deste ponto em diante designado como ‘AT’): ‘S’, de ‘Sacerdotal’ (o termo original é ‘P’, de ‘Priestly’, no inglês) e ‘D’, o deuteronomista.

Em muitos aspectos J e E partilhavam das perspectivas religiosas de seus vizinhos do Oriente Médio, mas suas versões mostram que no século VIII aC os israelitas começavam a desenvolver uma visão distinta própria. J, por exemplo, começa sua história de Deus com uma versão da criação do mundo que, comprada com a do Enuma Elish, é surpreendentemente superficial:

“...no dia em que Javé fez a Terra e os céus: e toda planta do campo que ainda não estava na terra, e toda a erva do campo que ainda não brotava; porque Deus não tinha feito chover sobre a Terra, e não havia homem para lavrar a terra. Um vapor, porém subia da terra. E formou Deus Javé o homem (adãm) de pó da terra (adãmah), e soprou em suas narinas o fôlego da vida: e o homem se tornou uma alma vivente.”

Em oposição aos demais mitos religiosos da mesma época, J utiliza-se de um jogo de palavras – adãmah = adãm = terra – para deixar claro que o homem não compartilha da mesma essência de seu Deus, mas foi feito por Ele da terra, e a ela pertence (‘És pó e ao pó voltarás’).

Era uma partida inteiramente nova. Em vez de concentrar-se na criação do mundo e no período pré-histórico, como seus contemporâneos pagãos da Mesopotâmia e de Canaã, J está mais interessado no tempo histórico comum. Só haveria verdadeiro interesse pela Criação em Israel quando o autor S escreveu sua majestosa versão do que viria a se tornar o primeiro capítulo do livro de Gênesis. Intrigante notar que J não está absolutamente certo de que Javé é o único Criador dos céus e da Terra: “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança...”

Também ao contrário de seus vizinhos pagãos, J não descarta a história mundana como profana, frágil e insubstancial em comparação com o tempo sagrado dos deuses. Ele passa muito rapidamente pelos acontecimentos da pré-História até chegar ao fim do período mítico, que inclui as narrativas do Dilúvio e da Torre de Babel, e chega ao início da história do povo de Israel. Esta começa abruptamente no capítulo 12, quando o homem Abrão, que mais tarde será chamado Abraão, (‘Pai de uma Multidão’), recebe a ordem de Javé para deixar sua família em Haran, hoje Turquia Oriental, e migrar para Canaã, perto do mar Mediterrâneo. Sabemos que o pai dele, Terah, um pagão, já migrou para o oeste com a família, partindo de Ur. Então Javé diz a Abraão que ele tem um destino especial: vai tornar-se o pai de uma grande nação, que um dia será mais numerosa que as estrelas no céu, e um dia seus descendentes possuirão a terra de Canaã. A versão de J do chamado de Abraão dá o tom para a futura história de seu Deus.

No Oriente Médio antigo, o "mana" divino era experimentado no ritual e no mito. Não se esperava, por exemplo que Marduk, Baal ou Anat se envolvessem nas vidas comuns e profanas de seus adoradores: suas ações se haviam realizado no tempo sagrado e agora encontravam-se ausentes, a não ser para intervir em favor deste ou daquele devoto em situações muitíssimo especiais. O Deus de Israel, no entanto, tornava seu poder efetivo em fatos atuais no mundo real, no aqui-agora. Era vivenciado como uma presença real e imediata. Sua primeira revelação de si mesmo consiste de uma ordem – que Abraão deixe seu povo e viaje para a terra de Canaã.

Mas... afinal, quem é Javé?? Adorava Abraão o mesmo Deus que Moisés, sendo que o conhecia por um nome diferente? Isso seria, claro, uma questão de primeira importância para nós, hoje, mas a Bíblia parece curiosamente vaga sobre o assunto, e dá respostas conflitantes a esta pergunta. J diz que os homens adoravam Javé desde a época do neto de Adão. Mas no século VI aC, S parece sugerir que os israelitas jamais tinham ouvido falar em Javé até ele aparecer a Moisés na Sarça Ardente. No texto de S, Javé explica que Ele era de fato o Deus de Abraão, como se esta idéia fosse algo controvertida: diz a Moisés que Abraão o chamara “El Shaddai” e não conhecia o Divino Nome "Javé" ('JAVEH' = 'EU SOU').

Essa discrepância não parece preocupar os escritores bíblicos ou seus editores. J chama Deus de Javé do princípio ao fim. Na época em que ele escrevia, Javé era o Deus de Israel e só isso importava. A religião israelita era pragmática. E não muito preocupada com esse tipo de detalhe. Contudo, não devemos supor que Abraão ou Moisés acreditassem em Deus como nós fazemos hoje. Estamos tão familiarizados com as histórias da Bíblia que tendemos a projetar sempre os nossos conhecimentos prévios da religião judaica atual naqueles primeiros personagens históricos. Por conseguinte, supomos que os três patriarcas de Israel – Abraão, seu filho Isaac e seu neto Jacó – já eram monoteístas que acreditavam no mesmo Deus que nós, hoje. Não parece ter sido assim. Provavelmente seria mais exato tentar compreender a esses primeiros hebreus como pagãos que partilhavam de muitas das crenças religiosas de seus vizinhos de Canaã. Certamente acreditavam na existência de divindades como Marduk, Baal e Anat.

Chocante? Podemos ir ainda mais longe. Não é improvável que o Deus de Abraão fosse El, o Sumo Deus de Canaã – já que Deus se apresenta a Abraão como “El Shaddai” (‘El da Montanha’), um dos títulos tradicionais de El. Em outra parte, ele é chamado “El Elyon” (‘Deus Altíssimo’) ou “El de Bethel”...

Existe muita informação fascinante a respeito das origens do Judaísmo e dos conceitos que viriam a formar a base das religiões ocidentais, sem dúvida. O verdadeiro legado da religião dos hebreus para a humanidade, porém, seria a absolutamente nova concepção do Deus Único, Transcendente e Imanente a um só tempo; Santo, e, principalmente, Inexplicável. Antes disto (e também depois, até os nossos dias) praticamente todas as religiões se esforçaram em tentar explicar detalhes de Quem é Deus, de como são os planos espirituais, da natureza da alma e as minúcias do que ocorre após a morte. Os hebreus trouxeram a noção de que Deus está além de qualquer possibilidade do entendimento humano, e que a única maneira de nos aproximarmos dele é simplesmente aceitando o Mistério que Ele representa, e colocando a Busca pela sua Verdade acima de qualquer outra coisa, em nossas vidas. O imperador romano Tito que o diga, ele que ao invadir Israel e entrar no Templo de Jerusalém, esperando encontrar alguma imensa estátua de ouro, representando aquele Deus que os judeus tanto amavam, achou nada além de um aposento vazio. Embora ele por certo não percebesse, era exatamente no Vazio que se encontrava o Segredo, a chave para a compreensão da fé e da força daquele povo misterioso, que teimava em não se prostrar diante das imagens dos seus deuses e nem se deixar conquistar...


Nota: O termo "pagão", todas as vezes que utilizado neste blog, refere-se ao termo culto da língua portuguesa que designa as religiões politeístas da antiguidade (Dicionário Priberan - Paganismo: antiga religião politeísta dos Gregos e Romanos; religião dos pagãos; os pagãos; politeísmo; idolatria). O uso feito da palavra neste espaço não tem, portanto, nenhuma conotação pejorativa.


Fonte:
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong / "Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo", 1999 - idem (Companhia das Letras).



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Origens da religião ocidental

A história do judaísmo é fundamental para qualquer compreensão mais aprofundada do que significa o termo “religião” no mundo de hoje. Todas as disciplinas religiosas que existem no mundo atual sofreram a sua influência; tanto as ocidentais quanto as orientais, como veremos a seguir. Em contrapartida, algumas outras tradições emprestaram ao judaísmo moderno certas noções e conceitos que até então não existiam nele.

Todos os ocidentais, inclusive os que abraçaram a tradição oriental, e mesmo os orientais - consciente ou inconscientemente - estão profundamente influenciados pelo legado do judaísmo. Todas as correntes esotéricas/místicas têm suas raízes no judaísmo. A idéia de Deus predominante no mundo de hoje tem suas raízes profundamente firmadas no judaísmo.

Uma vez meu mestre budista me disse que, mesmo ao buscar a Verdade no budismo, a minha visão da Verdade nunca seria aquela mesma encontrada pelos primeiros discípulos do Buda; isto é, seria impossível compreendê-la da mesma maneira que eles. Eu quis saber o por quê e ele me respondeu algo mais ou menos assim: "Porque a sua visão da Verdade provém do judaísmo; e a minha própria visão da Verdade também provém do judaísmo! Eu não creio que exista algum religioso em nosso mundo atual que não tenha sua visão de vida - de Deus, da Verdade, da Justiça e outros fundamentos - fortemente influenciada pela tradição judaica. Isso acontece mesmo com os orientais, porque a interação religiosa, hoje, é inevitável. Certos conceitos elementares que formam a base do pensamento humano, em nossa era, estão baseados em conceitos judaicos. E, se assim é, eu creio que é assim que deve ser; então é benéfico. Tudo é benéfico para quem está aberto, buscando com um coração sincero e aberto, como Sakiamuni. Não adianta resistir ao que é, isto seria estupidez. A Verdade não muda se a negarmos, e o único jeito de crescer é aceitando-a e procurando compreendê-la. Eu aceito e também aprendo. Aceite você, e também aprenda."

Na época eu realmente não pude entender exatamente o que ele queria dizer com isso. Mas hoje eu compreendo perfeitamente. Ele não falou, literalmente, em Inconsciente Coletivo, mas está claro que a herança judaica em nossos dias está sempre presente, influenciando o pensamento da humanidade em todos os níveis. Tudo que entendemos por certo e errado, Bem e Mal, compaixão, Amor e todos os outros conceitos básicos; tudo está, de uma ou outra maneira, profundamente influenciado pela cultura judaica.

O mais interessante aí é que a História nos mostra o quanto seria improvável que isso viesse a acontecer, um dia. Mas aconteceu. E, como disse meu mestre, não adianta resistir ao que é. Antes disso, o melhor é aprender. Esta é a única maneira de crescer (Uma reverência afetuosa aos Reverendos Neves e Imai, onde quer que estejam).

Por isso, aos que se importam, aconselho uma atenção especial aos nossos próximos posts...

Eu encerrei o post sobre Baal-Habab falando da completa originalidade da religião dos hebreus, a religião do Deus Único. Chega a hora de retomar o “fio” desta “meada”, numa cronologia minimamente coerente que estou tentando seguir na enciclopédia das religiões do Arte das artes.

A origem da mais inovadora das religiões é atribuída na Bíblia a Abraão, que deixou Ur da Caldéia e acabou instalando-se em Canaã, em alguma época entre os séculos XX e XIX aC. Não existem registros contemporâneos dele, mas estudiosos acham que tenha sido um dos chefes tribais errantes que conduziram seu povo da Mesopotâmia para o Mediterrâneo no fim do terceiro milênio aC. Esses errantes, alguns dos quais são chamados “Abiru”, “Apiru” ou “Hapiru” em fontes mesopotâmicas e egípcias, falavam idiomas semitas ocidentais, um dos quais é o hebraico. Não eram nômades do deserto como os beduínos, que migravam com seus rebanhos segundo o ciclo das estações. Eram bem mais difíceis de se classificar, e viviam em freqüente conflito com as autoridades conservadoras. O nível cultural deles era em geral superior ao da gente do deserto. Alguns serviam como mercenários, outros tornavam-se funcionários do governo, outros ainda trabalhavam como mercadores, criados ou funileiros. Alguns ficavam ricos e podiam então tentar adquirir terra e assentar-se.

As histórias sobre Abraão no Gênesis mostram-no servindo ao rei de Sodoma como mercenário, e descrevem seus freqüentes conflitos com as autoridades de Canaã e arredores. Sua esposa Sara acabou morrendo e ele comprou terra em Hebron, hoje Cisjordânia.

Abraão: patriarca dos patriarcas

A saga de Abraão e seus descendentes imediatos no Gênesis pode indicar que houve três ondas de primeiros assentamentos hebreus em Canaã, o moderno Israel. Um estava associado a Abraão e Hebron, e ocorreu em cerca de 1850 aC. Uma segunda onda de imigração relacionou-se com o neto de Abraão, Jacó, renomeado Israel (‘Que Deus Mostre Sua Força!’); ele estabeleceu-se em Shechem, hoje a cidade árabe de Nablus, na Cisjordânia. A Bíblia diz que os filhos de Jacó, que se tornaram os ancestrais das doze tribos de Israel, emigraram para o Egito durante uma severa fome em Canaã.

A terceira onda de assentamento hebreu ocorreu cerca de 1200 aC, quando tribos que se diziam descendentes de Abraão chegaram a Canaã, vindas do Egito. Diziam que haviam sido escravizadas pelos egípcios, mas libertadas pelo Deus Único, Javé (‘Eu Sou’), através do seu chefe, Moisés. Após entrarem em Canaã, aliaram-se aos hebreus de lá, e todos juntos tornaram-se conhecidos como o “Povo de Israel”.

A Bíblia deixa claro que o povo que conhecemos como os antigos israelitas era uma confederação de vários grupos étnicos, ligados sobretudo por sua lealdade ao Deus Único, o Deus de Moisés. A história bíblica provavelmente foi escrita séculos depois, por volta de VIII aC, mas sem dúvida usou fontes narrativas anteriores.

No século XIX, alguns estudiosos bíblicos alemães desenvolveram um método crítico que discerniu quatro diferentes fontes nos primeiros cinco livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Estes foram depois confrontados no texto final que conhecemos como Pentateuco no século V aC. Essa forma de crítica sofreu críticas, mas ninguém produziu ainda uma teoria mais satisfatória para explicar por que há duas versões bastante diferentes de acontecimentos bíblicos chave, como a Criação e o Dilúvio, e por que a Bíblia às vezes se contradiz. Os dois primeiros autores bíblicos, cuja obra se encontra no Gênesis e no Êxodo, escreveram provavelmente no século VIII aC, embora alguns lhes atribuam uma data anterior. Um é conhecido como “J”, porque chama a Deus “Javé”, e o outro como “E”, porque prefere o Título mais formal “Elohim”.

No século VIII aC, os israelitas haviam dividido Canaã em dois reinos separados. J escrevia no Reino de Judá, no sul, e E vinha do Reino de Israel, no norte. Há ainda mais duas fontes no Pentateuco: a Deuteronomista (‘D’) e a Sacerdotal (‘S’). – "S", na verdade, é conhecida entre os estudiosos como fonte ‘P’, de ‘Priestly’: sacerdotal em inglês. Aqui, por uma questão de tradução, usaremos o ‘S’. Estas duas fontes serão abordadas posteriormente.


Fonte:
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong / "Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo", 1999 - idem (Companhia das Letras).



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